Ministro do Supremo Tribunal Federal Teori Zavascki (Wikimedia Commons / Creative commons)
Em recente decisão da 2ª Turma do Supremo Tribunal
Federal (STF), o conceito de terra tradicionalmente ocupada foi
violentamente atacado. O ministro do STF Teori Zavascki afirmou que
“renitente esbulho [tomar posse do que pertence a outrem, insistentemente]
não pode ser confundido com ocupação passada ou com desocupação
forçada”. Segundo o ministro, apenas em caso de conflito contínuo por
posse, seja armado ou judicial, caracterizaria-se o despojo constante de
direitos e territórios tradicionais indígenas.
Em 2009, no processo de demarcação
da Terra Indígena (TI) Raposa Serra do Sol, em Roraima, os juízes do
STF elegeram a data de promulgação da Constituição Federal (1988) como
marco temporário para caracterizar a referida tradicionalidade sobre a
terra, ressaltando, no entanto, o chamado “renitente esbulho” como fator
para os índios não habitarem todas as suas terras tradicionais. Essa
ressalva, em teoria, garantiria o direito dos povos tradicionais às suas
terras, mesmo não vivendo nelas naquele marco temporário. Com a decisão
do ministro Zavascki, a garantia “subiu no telhado”.
Fosse a interpretação do ministro levada ao pé da letra, os
índios deveriam estar presentes fisicamente em suas terras no ano de
1988, inclusive naquelas ocupadas por fazendeiros e grileiros, lutando
contra armas de fogo para caracterizar o “esbulho”. Ou seja, na leitura
do ministro, só a guerra física legitima a jurídica.
Para Danicley Aguiar, coordenador da campanha de Amazônia
do Greenpeace Brasil, a interpretação de Zavascki está equivocada: “os
índios nunca desistiram dos territórios que foram ocupados. O renitente
esbulho é regra e foi construído para resolver o princípio do marco
temporário. Um juiz não pode dizer para um índio que não tem condições
de luta, recursos financeiros ou um advogado que ele não lutou, que ele
desistiu”.
Segundo Aguiar, além de injusta com a resistência histórica
dos povos indígenas do Brasil, a interpretação abriria espaço para que
grandes áreas de floresta griladas de TIs na Amazônia sejam beneficiadas
e juridicamente incorporadas ao agronegócio brasileiro.
O que apenas incentiva o trabalho de grileiros e posseiros,
segundo Cléber Buzatto, secretário-executivo do Conselho Indigenista
Missionário (CIMI). “A decisão fala para os inimigos dos povos indígenas
que vale a pena usar do mecanismo de desocupação forçada. Os esbulhos
que foram cometidos há tempo – e ainda são até hoje – serão validados
perante a lei”, completou ele.
A resistência do Povo Xavante (Mato Grosso) é um exemplo de que a decisão do ministro não condiz com a realidade. Na
década de 1960 os Xavante foram retirados à força de seu território,
abrindo espaço para a invasão de latifundiários e posseiros. Empresas
multinacionais compraram terras dentro do ancestral território indígena –
hoje a homologada TI Marãiwatsédé – e fazendeiros ocuparam a área até
janeiro de 2013, quando um auto da Justiça obrigou sua desintrusão. Vale
lembrar que daquela época em diante, cerca de 90% da terra foi
desmatada – ela é considerada um dos territórios mais destruídos da
Amazônia.
Índios Xavante foram expulsos de sua terra nos anos 60, onde até hoje vivem fazendeiros (© Rodrigo Baleia / Greenpeace)
“É uma decisão totalmente articulada com outros
poderes. Eles tentam colocar isso como interpretação, mas é uma decisão
politica para inviabilizar o processo de demarcação de Terras
Indígenas”, afirma Sonia Guajajara, liderança nacional indígena que
integra a coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil
(Apib). Para ela, “o próprio Judiciário está incitando o conflito. Nem
sempre os povos indígenas lutaram com armas. Nem sempre lutar significa
estar em conflito, para nós. A saída dos territórios, muitas vezes, se
deram por pura expulsão”.
As articulações da bancada ruralista que, em paralelo, reaviva a PEC 215
no Congresso Nacional, estão chegando em outras esferas de poder além
do legislativo. “O lobby já chegou no Judiciário. Não são mais decisões a
partir da análise jurídica, e sim de teor político. O agronegocio está
espalhado nos três poderes”, avalia Sonia.“O índio não precisa estar com o arco e flecha na mão, apontado para o fazendeiro, para ser válida sua luta”, conclui Danicley Aguiar.
A Funai (Fundação Nacional do Índio) foi intimada a apresentar parecer sobre a decisão, que ainda deve ser analisada pelos outros ministros que formam o pleno do STF. Caso esse plenário mantenha a decisão, pode haver um recrudescimento dos conflitos, levando a ainda mais mortes no campo.
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