Uma série de quatro reportagens sobre a luta do povo Munduruku contra a construção de barragens na Amazônia (Por Luana Lila)
Jairo Saw Munduruku, estudioso da história de seu povo (© Fábio Nascimento/Greenpeace)
PARTE I – A morte dos rios
“Viemos aqui falar para vocês da outra tragédia que iremos lutar
para evitar: a perda do nosso território e da nossa vida. Nós não viemos
negociar com vocês, porque não se negocia nem território nem vida. Nós
somos contra a construção de barragens que matam a terra indígena,
porque elas matam a cultura quando matam o peixe e afogam a terra. E
isso mata a gente sem precisar de arma. Vocês continuam matando muito.
Vocês simplesmente matam muito. Vocês já mataram demais, faz 513 anos.”.
4 de junho de 2013, Vitória do Xingu, Carta número 9: Tragédias e barragens (a luta não acaba nem lá nem aqui)
O texto acima é parte de um conjunto de dez cartas endereçadas ao
governo federal escritas por lideranças indígenas Munduruku e de outras
etnias a partir do canteiro de obras da usina hidrelétrica de Belo
Monte, que na ocasião foi ocupado por cerca de um mês em protesto contra
a construção de uma série de hidrelétricas nos rios Xingu, Teles Pires e
Tapajós.
Elas são fruto de um processo de resistência encabeçado por diversos
povos nativos do Brasil em defesa de seu território e de seu modo de
vida contra grandes empreendimentos do governo previstos na Amazônia.
Foram escritas para dar voz à gente que vive nos rios em que o
governo está construindo barragens: Munduruku, Juruna, Kayapó, Xipaya,
Kuruaya, Asurini, Parakanã, Arara, pescadores e ribeirinhos. “Nós somos da Amazônia e queremos ela em pé. Nós somos brasileiros”, diz trecho da primeira carta divulgada durante a ocupação.
Os rios que cortam a Amazônia são fundamentais para os habitantes da
floresta. O regime de seca e cheia das águas moldou a vida dessas
populações ao longo de centenas de anos. Além de principal fonte de
alimentação e meio de transporte, os rios fazem parte da cosmologia dos
povos que vivem ali. Interferir nessa dinâmica é interferir brutalmente
na forma como eles vivem, e até na sua sobrevivência.
É o que tenta explicar aos “pariwat” (como os Munduruku chamam os
não-índios), o historiador Munduruku Jairo Saw: “O rio faz parte de nós
porque nos dá vida. Os nossos antepassados deixaram esse patrimônio pra
gente, por isso temos que cuidar. A natureza tem uma lei, se a gente
violar, teremos consequências. Os pariwat nunca vão entender. O impacto é
também cultural, psicológico e espiritual. Pra nós [a construção de
barragens] é uma ofensa, uma violação dos nossos direitos”, afirma Saw.
Não é contra as hidrelétricas, é pelos direitos indígenas
De 1970 até hoje, a Amazônia já perdeu 19% de sua floresta. Após
diversos momentos de exploração da região, como a borracha, a extração
de ouro e minérios, a comercialização de madeira e a expansão do
agronegócio, vivemos hoje uma nova fronteira de exploração da Amazônia: a
construção de usinas hidrelétricas.
Os impactos socioambientais das barragens são inúmeros e vêm sendo
comprovados a cada nova grande obra erguida no meio da Amazônia. Perda
da biodiversidade, desmatamento, inchaço populacional de cidades e
comunidades locais, serviços públicos insuficientes, poluição de rios e
igarapés, violência, prostituição, tráfico de drogas, deslocamento de
populações tradicionais, mudança no curso natural dos rios, perda de
meios de sobrevivência com pesca são alguns dos mais dramáticos impactos
registrados obra após obra. É o que tem acontecido em Altamira, onde
está sendo construída Belo Monte, que tece o exemplo para o Tapajós.
Para discutir os paralelos entre as duas obras, lideranças Munduruku
se encontraram no final de março com Antonia Melo, liderança do
Movimento Xingu Vivo, e Dom Erwin Kräutler, bispo da prelazia do Xingu
que mora há mais de 30 anos na Amazônia e é uma referência para os
movimentos sociais na região na luta contra Belo Monte. A conversa faz
parte de uma articulação entre os povos da Amazônia para denunciar as
ameaças ao seu modo de vida e aos seus territórios causada pelas
hidrelétricas.
Ambos contaram aos Munduruku os problemas que os índios do Xingu vêm
sofrendo com a construção das barragens, como igarapés que começaram a
secar, forçando a abertura de estradas que promovem a invasão das terras
indígenas, e a dependência alimentar, que segue cada vez maior, com os
índios deixando de produzir suas roças e dependendo de alimentos que vem
de fora, podendo causar doenças comuns em brancos mas antes
desconhecidas pelos índios, como diabetes e obesidade.
“É como se direitos fundamentais garantidos na Constituição tivessem
se tornado moeda de troca”, afirmou Dom Erwin. Para facilitar a
aceitação de empreendimentos como esses pelas populações locais, saúde,
educação e infraestrutura passam a ser oferecidos pelas empresas
construtoras como favores, enquanto o Estado negligencia um papel que
deveria ser seu.
“Essa ideia de energia limpa tem que ser repensada. Energia de
hidrelétrica não é limpa se está sendo construída em cima do sangue dos
povos” afirma o religioso. “O debate não é Belo Monte, o debate é a
sobrevivência dos povos indígenas”.
Na linha de frente dessa batalha de David contra Golias pela
sobrevivência, ou, do jabuti contra a anta (para falar a partir da
cosmologia indígena) está o povo Munduruku: mais de 12 mil pessoas que
habitam a região do rio Tapajós, no Pará e que são os protagonistas da
luta contra as obras no rio que lhes dá vida.
“Nós fazemos parte da natureza, não queremos que nosso conhecimento
desapareça, nossa forma de vida, de organização. Queremos que nos
respeitem, que o mundo saiba o que estamos sentindo”, diz Jairo Saw.
Saiba mais sobre os Munduruku e a luta pela demarcação de suas terras na próxima reportagem
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