Sete anos atrás, quando comecei a ir de bike ao
trabalho – e também para a feira, para a balada e até para casamentos –
São Paulo não tinha ciclovias. Minto! Tinham alguns quilômetros dentro
de parques e alguns pontos de ônibus dentro de ciclovias. A
saga começa num dia de greve no Metrô quando eu, dentro de uma van com
colegas do trabalho, num trânsito impossível, olhei para os carros que
me cercavam e percebi algo confirmado pelas estatísticas: em quase
todos, só havia uma pessoa. Ali mesmo decidi: não seria parte do
problema. Renunciei a um direito-quase-dever: o de possuir um automóvel.
Ponto de ônibus exatamente sobre uma ciclovia. (©Rachel Schein/Vá de Bike)
O processo de ir pra rua foi parecido com o de muitas
outras pessoas que usam a bicicleta como transporte. Conversei com
amigos que já pedalavam e busquei informações na Internet (este, este e este são essenciais, e sempre dá para pedir uma ajuda ao Bike Anjo). Finalmente comprei uma bicicleta, que me acompanha até hoje, e fui para a rua pela primeira vez.
Comecei a participar da Bicicletada e
aprendi muito sobre a cidade. Mudei minha perspectiva sobre o tecido
urbano. Tornei-me um melhor motorista e um melhor pedestre porque passei
a entender o essencial: todo mundo está indo para algum lugar, todo
mundo é trânsito, todo mundo tem o mesmo direito à cidade, seja
passeando, seja trabalhando, seja de ônibus, à pé, de bicicleta, moto ou
de carro. Entendi, pela primeira vez, que o outro não é um obstáculo e o
trânsito não precisa ser competitivo – não somos pilotos de Fórmula 1.Sozinhos éramos invisíveis, mas juntos, pedalávamos por respeito nas ruas. Não pedíamos ciclovias porque ciclovias são importantes, mas não o mais importante. O que traz a segurança é mais ciclista na rua, é respeito à vida. O que traz segurança é entender que somos todos responsáveis pelas vidas uns dos outros. Que o maior protege o menor. Assim como irei cuidar dos pedestres ao pedalar, também o motorista deve cuidar do ciclista ao dirigir. O que traz a segurança não são capacetes e afins .
O que traz segurança, repito, não são as ciclovias. Até porque os 400 km prometidos pelo Haddad, ou mesmo os 1.500 km que definidos no novo Plano de Mobilidade de São Paulo, construído com a participação ativa da sociedade, não chega a 10% dos 17 mil quilômetros de vias da cidade. Eventualmente, o ciclista irá sair da ciclovia e, aí, só o respeito à vida, a legitimidade e o cuidado de todos com todos irá garantir a segurança.
Willian Cruz e Priscila Cruz foram casar de bicicleta (©Vitor Leal)
Mas ciclovias são importantes. Ciclovias são celeiros de novos ciclistas. É pela sensação de proteção nesses espaços segregados que pessoas que sempre quiseram pedalar e nunca se sentiram à vontade começam a transitar pela cidade. É com essa afluência de novos ciclistas, que são também pedestres, motoristas, usuários de táxi e de transporte público, que a segurança se dá. Eu, como motorista, tomarei mais cuidado com aquela pessoa na bike porque me identifico. Porque tenho uma amiga, um colega de trabalho, minha mãe, meu namorado, alguém que eu conheço e amo, pedala. E podia ser essa ciclista que está ali, pedalando na minha frente. Mais ciclistas na rua significa mais amor e cuidado no trânsito.
Corta para 2015
Já são 318,2 km de ciclovias entregues e novos trechos inaugurados a cada dia. E, enquanto uns fazem, outros tentam destruir. Ao mesmo tempo em que o atual prefeito trabalha para cumprir seu compromisso de 400km de ciclovias, vereadores, promotoras públicas e pré-candidatos à prefeitura, encastelados no discurso demagógico e falacioso de “sou a favor de ciclovias, mas tem que ter planejamento”, ignoram que São Paulo passou 30 anos fazendo planos cicloviários sem fazer de fato as ciclovias.
Na tentativa de enfraquecer um adversário político, acabam minando uma política pública que salva vidas. Aquilo que é uma conquista para a humanização das cidades, para a proteção da vida, para a redução da poluição, aumento da saúde e qualidade de vida das pessoas e, acima de tudo, uma reivindicação de décadas do movimentos de ciclistas, acaba sendo partidarizada e jogada dentro de uma lógica política das mais mesquinhas. Pior: dizem falar em nome dos ciclistas, na pretensa intenção de defendê-los. Negligenciam o fato de que os ciclistas estão representados, discutem e influenciam o formato e os locais a receberem ciclovias. Daí as ciclovias tanto pedidas e finalmente entregues são taxadas de “Ciclovias do Haddad” quando, na verdade, elas são Ciclovias da Cidade. Da cidade que queremos.
O que esses críticos das ciclovias, autoproclamados defensores dos ciclistas e do bom planejamento, ignoram – por negligência ou má fé – que, ao construir esse discurso, estão colocando vidas em risco. O discurso de ódio e inflamação da opinião pública, com pitadas de mentira (veja aqui) e desinformação, faz com que motoristas, já cansados e estressados de um trânsito que, sinto informar, só vai piorar, passem dos limites e ataquem quem não deveria ter que se defender.
Ontem isso aconteceu comigo. Ontem, ao subir a rua dos Pinheiros, completamente parada pelo trânsito motorizado, deixando para trás carros e mais carros ansiosos por acelerar, tive uma conversa bizarra com uma motorista. Quando, mais para cima, o trânsito fluiu, ela passou ao meu lado buzinando loucamente, como se fosse eu o culpado por todo o estresse que ela estava vivendo. Logo à frente, parou no farol. Encostei ao seu lado e, calmo, perguntei se era ela quem havia buzinado. Ela abriu o vidro de seu carro de luxo e vociferou que eu não devia estar na rua: “devia ir para as ciclovias superfaturadas do PT”.
Ouvi outro relato, do mesmo dia, de um motorista que, depois de colidir com uma bicicleta dentro da ciclovia, disse: “tem que morrer mesmo, esse povo de bicicleta”, “se não sair da frente, vou matar”. O discurso de ódio, da partidarização de uma política pública benéfica para a cidade, coloca em risco a vida das pessoas.
Devemos sim discutir as ciclovias de São Paulo. Devemos sim falar sobre os problemas que nelas existem. Mas devemos fazer essa discussão sob a ótica da melhoria, transformando-as em política de Estado e não de um partido. Porque prefeitos se vão, mas a cidade fica. Porque mais bicicletas nas ruas significa um trânsito mais humano para todos, do pedestre ao motorista. Porque, pode parecer bobagem, mas ciclovias trazem benefícios até para os motoristas, já que melhoram o fluxo dos automóveis. E, finalmente, porque devemos proteger a vida.
Aproveito para desafiar você, que lê este texto, a parar
por dez minutos ao lado de uma ciclovia e observar os rostos das pessoas
nas bicicletas e das pessoas nos carros e responder o que é melhor para
a cidade.
*Vitor Leal é da campanha de clima e energia do Greenpeace Brasil
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