Índios Munduruku durante oficinas para discutir o direito à
consulta prévia, livre e informada previsto na Convenção 169
(©Greenpeace/Fábio Nascimento)
Cerca de 600 representantes Munduruku e mais de cem caciques de todas as aldeias da região aprovaram, durante Assembleia Extraordinária do Povo Munduruku, no início de dezembro, um protocolo para orientar o processo de consulta livre, prévia e informada prevista na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), da qual o Brasil é signatário.
Com esse protocolo, os Munduruku decidem sobre como querem ser consultados em relação à construção de hidrelétricas no rio Tapajós e também a outras obras que possam ter impacto em suas vidas e seus territórios.
Entre várias diretrizes, o protocolo define que o processo de consulta não se restringe apenas aos caciques e às lideranças das organizações que representam os indígenas. Pelo contrário, ela deve ocorrer em todas as aldeias, para consultar todo o povo.
Além disso, os Munduruku definiram que não irão aceitar a presença de policiais armados durante as reuniões de consulta, não aceitarão ser removidos de seus territórios e que a consulta só deve ocorrer após o avanço no procedimento de demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu, que corre o risco de ser alagada caso as usinas sejam construídas.
O protocolo faz parte da luta do povo Munduruku contra a decisão do governo de construir um complexo de cinco usinas hidrelétricas no rio Tapajós. Desde 2012 eles vêm protagonizando umas das mais fortes resistências à construção de barragens hidrelétricas na Amazônia e pedindo o cumprimento da Convenção 169 da OIT.
Além de alterar o fluxo das águas, a soma da área dos reservatórios das cinco usinas previstas ultrapassa o tamanho da cidade de São Paulo e atinge milhares de hectares floresta que outrora estavam protegidas por unidades de conservação e territórios do povo Munduruku.
O governo deu início ao processo de licenciamento da usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós, a primeira de cinco hidrelétricas previstas na região, sem realizar a consulta prévia. Porém, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) obrigou o governo a consultar os indígenas.
“No atual momento do Brasil, marcado pelo flagrante desrespeito aos direitos indígenas por parte do Estado brasileiro, os Munduruku dão um exemplo de democracia e convocam o governo para um amplo processo de consulta, reforçando a resistência das lideranças indígenas de todo o país em não aceitar a supressão de seus direitos e muito menos permitir a execução de projetos que passam por cima da vontade dos povos indígenas”, disse Danicley de Aguiar, da Campanha da Amazônia do Greenpeace.
A construção do protocolo foi resultado de um largo ciclo de conversas e articulações entre as lideranças, Ministério Público Federal e ONG’s a partir do projeto “Consulta prévia, livre e informada: um direito dos povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia”.
- Veja o vídeo sobre o projeto:
- Leia a íntegra do Protocolo de Consulta:
Protocolo de Consulta Munduruku
Elaborado pelos Munduruku
reunidos na aldeia Waro Apompu, Terra Indígena Munduruku, em 24 e 25 de
setembro de 2014, e na aldeia Praia do Mangue, em 29 e 30 de setembro de
2014. Este documento foi aprovado em assembleia extraordinária do povo
Munduruku na aldeia Sai Cinza, em 13 e 14 de dezembro de 2014.
Nós, o povo Munduruku, queremos ouvir o que o
governo tem para nos falar. Mas não queremos informação inventada. Para o
povo Munduruku poder decidir, precisamos saber o que vai acontecer na
realidade. E o governo precisa nos ouvir. Antes de iniciar a consulta,
exigimos a demarcação da Terra Indígena Sawré Muybu. Sabemos que o
relatório está pronto. Temos vídeo da Presidência da Funai admitindo que
a demarcação não ocorre por conta da hidrelétrica. O governo não está
agindo com a boa fé que exige a consulta (Convenção n. 169, artigo 6º).
Jamais aceitaremos ser removidos. E sabemos que a Constituição está ao
nosso favor! Exigimos também que o governo proteja os parentes isolados
que vivem em nossa terra e garanta o direito de consulta dos outros
povos atingidos por seus projetos, como os Apiaká e os Kayabi. E,
finalmente, exigimos que as comunidades ribeirinhas que serão atingidas
pelas barragens no rio Tapajós (como Montanha e Mangabal, Pimental e São
Luiz) tenham seu direito à consulta garantido, de modo adequado e
específico à realidade delas. Assim como nós, os ribeirinhos também têm
direito a uma consulta própria.
Quem deve ser consultado?
Os Munduruku de todas as aldeias – do Alto, Médio e
Baixo Tapajós – devem ser consultados, inclusive daquelas localizadas em
terras indígenas ainda não demarcadas. Nós não queremos que o governo
nos considere divididos: existe só um povo Munduruku. Devem ser
consultados os sábios antigos, os pajés, os senhores que sabem contar
história, que sabem medicinas tradicionais, raiz, folha, aqueles
senhores que sabem os lugares sagrados.
Os caciques (capitães), guerreiros, guerreiras e as
lideranças também devem ser consultados. São os caciques que se
articulam e passam informações para todas as aldeias. São eles que
reúnem todo mundo para discutirmos o que vamos fazer. Os guerreiros e
guerreiras ajudam o cacique, andam com ele e protegem o nosso
território. As lideranças são os professores e os agentes de saúde, que
trabalham com toda a comunidade.
Também devem ser consultadas as mulheres, para
dividirem sua experiência e suas informações. Há mulheres que são pajés,
parteiras e artesãs. Elas cuidam da roça, dão ideias, preparam a
comida, fazem remédios caseiros e têm muitos conhecimentos tradicionais.
Os estudantes universitários, pedagogos Munduruku,
estudantes do Ibaorebu, os jovens e crianças também devem ser
consultados, pois eles são a geração do futuro. Muitos jovens têm acesso
aos meios de comunicação, leem jornal, acessam internet, falam
português, sabem a realidade e têm participação ativa na luta do nosso
povo.
As nossas organizações (Conselho Indígena Munduruku
Pusuru Kat Alto Tapajós – Cimpukat, Da’uk, Ipereg Ayu, Kerepo, Pahyhyp,
Pusuru e Wixaxima) também devem participar, mas jamais podem ser
consultadas sozinhas. Os vereadores Munduruku também não respondem pelo
nosso povo. As decisões do povo Munduruku são coletivas.
Hoje, nós habitamos cerca de 130 aldeias, no Alto,
Médio e Baixo Tapajós. Mas lembramos que, por causa da organização
social do nosso povo, novas aldeias podem surgir.
Como deve ser o processo de consulta?
O governo não pode nos consultar apenas quando já
tiver tomado uma decisão. A consulta deve ser antes de tudo. Todas as
reuniões devem ser em nosso território – na aldeia que nós escolhermos
–, e não na cidade, nem mesmo em Jacareacanga ou Itaituba. As reuniões
não podem ser realizadas em datas que atrapalhem as atividades da
comunidade (por exemplo, no tempo da roça, na broca e no plantio; no
tempo da extração da castanha; no tempo da farinha; nas nossas festas;
no Dia do Índio).
Quando o governo federal vier fazer consulta na
nossa aldeia, eles não devem chegar à pista de pouso, passar um dia e
voltar. Eles têm que passar com paciência com a gente. Eles têm que
viver com a gente, comer o que a gente come. Eles têm que ouvir a nossa
conversa. O governo não precisa ter medo de nós. Se ele quer propor algo
que vai afetar nossas vidas, que ele venha até à nossa casa. Não
aceitaremos dialogar com assessores, queremos ser consultados por quem
tem o poder de decisão.
As reuniões devem ser na língua Munduruku e nós
escolheremos quem serão os tradutores. Nessas reuniões, nossos saberes
devem ser levados em consideração, no mesmo nível que o conhecimento dos
pariwat (não índios). Porque nós é que sabemos dos rios, da
floresta, dos peixes e da terra. Nós é que coordenaremos as reuniões,
não o governo. Devem participar das reuniões os parceiros do nosso povo:
o Ministério Público Federal, as organizações escolhidas por nós e
nossos convidados especiais, inclusive técnicos de nossa confiança, que
serão indicados por nós. Os custos da nossa presença e dos nossos
parceiros em todas as reuniões devem ser pagos pelo governo.
Para que a consulta seja realmente livre, não aceitaremos pariwat armados
nas reuniões (Polícia Militar, Polícia Federal, Polícia Rodoviária
Federal, Exército, Força Nacional de Segurança Pública, Agência
Brasileira de Inteligência ou qualquer outra força de segurança pública
ou privada). Nós usamos arco e flecha porque faz parte da nossa
identidade e não diretamente para guerrear.
Para nossa segurança, as reuniões devem ser filmadas
por nosso povo. Parceiros e agentes do governo por nós autorizados
podem filmar e fotografar, desde que nos entreguem cópias integrais (sem
edição) logo após o fim da reunião. Nossos locais sagrados não podem
ser filmados nem fotografados. Não aceitaremos a divulgação ou uso
indevido de nossa imagem.
As reuniões sobre as quais falamos até agora, dividem-se em:
- Reunião para fazer acordo sobre o plano de consulta: O
governo deve se reunir com o povo Munduruku para chegarmos a um acordo
sobre o plano de consulta. O plano de consulta deve respeitar este
documento, que diz como nos organizamos e tomamos nossas decisões.
- Reunião informativa: O governo
deve se reunir com nosso povo, de aldeia em aldeia, para informar seus
planos e tirar nossas dúvidas. Além de nós, devem participar dessa
reunião os parceiros do nosso povo.
- Reuniões internas: Depois dessa
reunião, precisaremos de tempo para discutir, entre nós, a proposta do
governo. Precisaremos de tempo para explicar a proposta aos parentes que
não puderam participar das reuniões informativas. Também queremos nos
reunir com os ribeirinhos (por exemplo, de Montanha e Mangabal), para
discutirmos. Podemos convidar nossos parceiros para as nossas reuniões
internas. Já o governo não pode estar presente. Se aparecerem mais
dúvidas ou novas informações forem acrescentadas, o governo deverá fazer
mais reuniões informativas, com a nossa participação e de nossos
parceiros. Depois disso, poderemos fazer outras reuniões com nossos
parceiros, sem o governo, para tirar outras dúvidas e discutir – quantas
reuniões forem necessárias para o povo Munduruku informar-se
completamente.
- Reunião de negociação: Quando nós
tivermos informações suficientes e tivermos discutido com todo nosso
povo, quando nós tivermos uma resposta para dar ao governo, o governo
deve se reunir com nosso povo, em nosso território. Nesta reunião, devem
participar também os nossos parceiros. O governo deve ouvir e responder
a nossa proposta, mesmo que ela for diferente da proposta do governo. E
lembramos: não aceitamos que o governo use direitos que já temos – e
que ele não cumpre – para nos chantagear.
Como nós, Munduruku, tomamos nossas decisões?
Quando um projeto afeta todos nós, a nossa decisão é
coletiva. O governo não pode consultar apenas uma parte do povo
Munduruku (não pode, por exemplo, consultar só os Munduruku do Médio
Tapajós ou só os do Alto). O governo vem sussurrando nos nossos ouvidos,
tentando dividir a gente. Nenhuma associação Munduruku decide só,
nenhuma associação responde pelo nosso povo. As decisões do nosso povo
são tomadas em assembleia geral, convocada por nossos caciques. São os
nossos caciques, reunidos, que definem a data e o local da assembleia
geral e convidam os Munduruku para participar dela.
Nas assembleias, as nossas decisões são feitas
depois de discussão: nós discutimos e chegamos a um consenso. Se for
preciso, discutimos muito. Nós não fazemos votação. Se não houver
consenso, é a maioria que decide.
O que o povo Munduruku espera da consulta?
Nós esperamos que o governo respeite a nossa decisão. Nós temos o poder de veto. Sawe!
* A construção deste documento foi assessorada
pelo projeto “Consulta prévia, livre e informada: um direito dos povos
indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia”, e pelo Ministério
Público Federal.
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