por Juliana Arini
Os impactos do fogo sobre a megadiversidade do Pantanal tornou a fauna uma bandeira viva do sofrimento gerado por um Brasil em chamas
A cena de uma onça-pintada em agonia por queimaduras de terceiro grau chocou a opinião pública. Foi o sofrimento dos animais que trouxe à tona a dimensão dos incêndios que assolam o Pantanal. Com os tendões expostos por queimaduras, foi preciso o apoio de um helicóptero de resgate. Em poucos dias, outra onça seria resgatada nas mesmas condições. Ambas se recuperam em um centro de fauna, em Goiás, com um tratamento com células-tronco.
Apesar de sobreviverem, é pouco provável que possam voltar a viver livres na natureza. Em uma expedição que percorreu mais de mil quilômetros para documentar o estrago das queimadas em Mato Grosso, a equipe do Greenpeace Brasil, registrou os esforços das equipes de resgate à fauna para socorrerem os animais, as primeiras vítimas do fogo.
“Estamos aqui desde o primeiro momento que os incêndios foram noticiados. Apesar dos esforços, há muitos animais queimados e intoxicados pela fumaça. Além do tratamento médico, o nosso trabalho inclui oferecer água e alimento, pois o fogo, além de produzir ferimentos, destruiu a capacidade dos animais de se alimentarem. O último animal que resgatamos era uma quati, muito debilitado e desidratado”, diz Carla Sássi, bombeira civil e veterinária que coordena os voluntários do Grupo de Resgate de Animais em Desastres (GRAD). Eles já atuaram em outras regiões de tragédias ambientais, como o rompimento das barragens de mineração de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.
“Ainda tem o pós fogo e a escassez de alimentos, a gente vê que queimou muita vegetação, então muitos animais estão perdendo a fonte de alimentação. Tem ações muito importantes como fornecimento de alimento por um período ainda de pós fogo, cuidados após a chuva”, conta Jorge Salomão Júnior, médico veterinário da Ampara Silvestre.
É a primeira vez durante incêndios florestais nacionais que uma grande operação de resgate de animais acontece. Um tipo de intervenção que comprova as grandes proporções e o descontrole dos incêndios que segue por todos os biomas do país, e atinge o Pantanal de forma mais dramática. Um monitoramento da Universidade Federal do Rio de Janeiro aponta que as queimadas consumiram 26% de todo o Pantanal brasileiro, entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
As marcas do encontro dos animais com o fogo geram cenas de horror. As margens da MT-060, carcaças de um rebanho revelam a agonia de uma fuga mal sucedida. Entre o solo retorcido de um açude seco, sete bovinos morreram carbonizados. É possível ver a cerca arrebentada pelo corpo dos animais em desespero. Porém a poucos metros de chegarem a estrada, alguns sucumbiram ao fogo.
“Há anos eu acompanho queimadas em todo país, mas nunca havia visto uma área com carcaças assim. É desolador, me lembra a primeira vez que percorri uma área após a passagem de um incêndio intenso na Amazônia”, conta Cristiane Mazzetti, da campanha de florestas do Greenpeace Brasil, enquanto avalia a paisagem quase lunar e cinzenta onde os restos dos bovinos estão.
As chamas seguem sem controle há três meses no Pantanal. Além dos
animais de criação, como bois e búfalos, mais de mil espécies da fauna
local estão entre as principais vítimas. “Os animais de locomoção lenta
acabam sendo os mais atingidos, como cobras e lagartos. Foram os que
perderam mais populações.”, diz Jorge Salomão Júnior, médico veterinário
da Ampara Silvestre, uma das instituições que atua voluntariamente na
Estrada Parque Transpantaneira (MT-060), em Porto Jofre, a trezentos
quilômetros da capital mato-grossense. “Foram muitas perdas. Também
encontramos muitos quatis queimados e agonizando por falta de alimento e
intoxicação pela fumaça”, diz.
Paraíso ameaçado
O menor bioma nacional, com 160 mil km², é um dos mais megadiversos do país. Essa concentração de animais fez do Pantanal um dos principais destinos do turismo de observação de fauna. Em menos de meia hora pelas estradas pantaneiras, mesmo com fogo e fumaça, é possível comprovar essa vocação. Bandos de quatis, antas, cervos e lobinhos, são personagens comuns da região.
Mesmo com uma grande estiagem e um céu cinzento, a primeira ponte da Rodovia Transpantaneira, é uma das mais belas paisagens do país. Garças, colhereiros, gaviões-belo e jacarés se aglomeram em torno dos corixos, os pequenos braços dos rios pantaneiros. Refúgio dos mamíferos de grande porte, as aves também encontram na sazonalidade das baías pantaneiras um local ideal para reprodução. No Pantanal existem 462 espécies de aves, 263 peixes de água doce, 104 mamíferos e 41 répteis.
O fogo fez o que antes era proteção tornar-se uma armadilha. “Era a época da reprodução das araras-azuis. Elas estavam formando ninho quando as queimadas chegaram”, explica Neiva Guedes, bióloga e idealizadora do projeto Arara-Azul, que há três décadas monitora ninhos de araras no Pantanal para salvar a espécie da extinção.
Os berçários das aves foram os locais mais afetados pelo fogo, como em São Francisco do Perigara, em Barão de Melgaço, a 500 quilômetros de Cuiabá. “Ali, monitoramos mais de 500 ninhos. O fogo, além de destruir muitas árvores necessárias para reprodução, acabou com as palmeiras de Acuri, que as araras usam para se alimentar”, diz Neiva. Essa semana os biólogos do instituto divulgam imagens dos filhotes de araras agonizando de calor e falta de água nos ninhos.
Quando se questiona sobre a resiliência do Pantanal ao fogo (ou seja, capacidade do ambiente se recuperar), os especialistas são pouco otimistas quanto à fauna. Nenhum ousa dizer que o bioma vai conseguir recuperar por completo a biodiversidade perdida nas chamas. “Me preocupo muito com as antas. Elas têm um número de prole pequena e um grande tempo de gestação. Será difícil recuperarem o mesmo número de indivíduos”, diz Jorge da Ampara, que há mais de 30 dias dedica-se ao apoio à fauna pantaneira.
Foi a morte de uma anta com filhote que desencadeou a construção de uma rede de voluntários para apoiar a fauna do Pantanal. “Vi uma anta e um filhote tentando fugir das chamas. Fiquei muito tocado porque no dia seguinte encontramos os dois animais carbonizados. Foi quando meu filho João Falcão e sua noiva, Eduarda Fernandes, decidiram pedir ajuda”, diz Eduardo Falcão, empresário de turismo da região que também atua como guia de fauna no Parque Estadual do Encontro das Águas, em Porto Jofre. O local teve 85% de suas vegetação atingida pelas chamas, segundo análises do Instituto Centro de Vida (ICV).
Mais de cinco entidades da sociedade civil atuam no Pantanal em apoio à fauna para minimizar os estragos do fogo. São ONGs e grupos de voluntários formados por cidadãos que dedicam seus dias para arrecadar alimentos, água, medicamentos e reduzir o sofrimento dos animais.
Um centro de tratamento médico foi erguido no quilômetro 17 da Transpantaneira. “Ver a onça naquele sofrimento me comoveu. Foi quando pensei que podia fazer algo para ajudar e comecei a mover fundos para criar o Posto de Atendimento Emergencial a Animais Silvestres do Pantanal (PAEAS Pantanal)”, explica o Paulo Barroso, coronel bombeiro-militar do corpo de Bombeiros de Mato Grosso.
No local estão abrigados os animais que foram resgatados pela Ampara e GRAD e passaram por cuidados médicos intensivos. Uma cotia com todo o corpo queimado, duas lontras, um tamanduá, dois gaviões e uma coruja se recuperaram nos recintos após sobreviverem ao horror das queimadas.
Ironicamente, os R$ 500 mil investidos para estruturação física do PAEAS vieram dos compromissos de Mato Grosso em reduzir à destruição do bioma Amazônia, também ameaçado pelo fogo. Parte dos aportes da Secretaria de Meio Ambiente (Sema) tem origem no Programa REM-MT (da sigla em inglês, REDD+ para Pioneiros), fruto dos acordos da Conferência Mundial do Clima (Cop-21), que aconteceu em Paris, entre o estado de Mato Grosso e países europeus para evitar o desmatamento da floresta.
É o dinheiro do REM que custeou toda operação Pantanal II de combate às queimadas. Mesmo insuficiente, os pequeno contingente de 200 homens que atuam no bioma foi deslocado à região com recursos do REM, que estão condicionados a redução das queimadas em Mato Grosso.
Os animais também dependem da garantia de que grandes incêndios não vão ocorrer nos próximos anos. “Antes das queimadas deste ano, as araras-azuis vinham recuperando suas populações e chegaram a sair da lista de ameaçadas de extinção. Depois de todo esse fogo, podem voltar a ser consideradas sob risco se nada for feito para evitar as queimadas”, alerta Neiva Guedes.
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