Juliana Arini
Combatentes voluntários arriscam a vida no enfrentamento ao maior incêndio no bioma desde que começou a medição em 1998
O incêndio em turfa é considerado nos manuais de combate ao fogo como um dos mais complexo tipos de incêndios florestais. A primeira vista, parece que não há fogo na área, enquanto no subsolo um incêndio florestal de grandes proporções se desenvolve silenciosamente.
A turfa é o tipo de material orgânico resultante da decomposição da vegetação que se acumula no solo e pode alcançar vários metros de profundidade, tornando-se altamente inflamável. “Essa matéria orgânica é um tapete sob o solo do Pantanal. Isso queima igual cigarro. Se não for jogado água vai queimar até o fim”, explica Raphael Santos, que deixou temporariamente sua profissão de guia especialista em aves para integrar uma brigada voluntária no Pantanal, em Mato Grosso.
O bioma é um dos mais afetados pelas queimadas e teve 26% de sua área atingida pelo fogo até o início de outubro, segundo levantamento independente da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após a passagem da primeira frente de queimadas, o fogo de turfa tornou-se o pesadelo dos 200 brigadistas que estão na região lutando contra a pior temporada de incêndios florestais dos últimos 50 anos no Pantanal.
“É muito quente, não dá para aproximar as mãos do solo. Parece inofensivo, mas engana”, afirma Cristiane Mazzetti, da campanha de Florestas do Greenpeace Brasil, durante a expedição para acompanhar a situação dos incêndios no bioma que se alastram para os biomas Cerrado e a Amazônia. “Nunca tinha presenciado esse tipo de fogo. É impressionante e assustador. Geralmente vemos o fogo de copa de árvores, comum na Amazônia”.
A região visitada, na Rodovia Transpantaneira (MT-060), parece ter sido queimada há dias. As cinzas da superfície escondem um incêndio ativo. A brigada voluntária na qual Raphael atua é formada por guias turísticos e empresários do turismo de natureza da Associação de Ecoturismo do Pantanal Norte – AECOPAN. Eles combatem o fogo próximo à pousada Aymara há dois meses. Outra frente desses voluntários se ocupa no resgate de animais e na tentativa de salvar as 120 pontes da Transpantaneira, que liga Poconé a Porto Jofre, a 300 quilômetros da capital mato-grossense.
Há uma semana, combatentes do Corpo de Bombeiros Militar de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul apoiam à brigada da AECOPAN. Eles tentam construir barreiras artificiais para impedir a propagação do fogo de turfa. A linha do “aceiro”, um tipo de barricada cavada no solo para conter a propagação do fogo de turfa, serpenteia a paisagem cinza cercada por árvores queimadas.
Ao caminhar na trilha de combate, afloramentos de focos de fogo surgem na vegetação que resta como combustível. No fim da linha, uma triste constatação, a frente de fogo expandiu-se e passou a linha de defesa criada pelos brigadistas e combatentes. Não se trata mais de fogo de turfa, mas também de fogo rasteiro na vegetação arbustiva e gramíneas.
“Há dois dias achamos que os incêndios nessa região estavam controlados. Depois com um voo de drone vimos fumaça. Agora isso. Vivemos nesse carrossel de emoções, um misto de decepção e desespero. Aqui temos poucas vitórias. Mas não podemos desistir. Se não fosse por nós, já teria queimado muito, muito mais. O que fazemos é atrasar o fogo, até que cheguem as chuvas ou mais ajuda”, diz Giuliano Bernardon, guia especialista em aves e brigadista voluntário da AECOPAN.
O fogo de turfa está presente em quase todos os 160 mil quilômetros quadrados do Pantanal. Na Transpantaneira é possível ver o subsolo fumegante ao longo da rodovia. O vento e o ar seco criam redemoinhos de fogo. Animais e humanos são vítimas dessas armadilhas já que, muitas vezes, não é possível ver o fogo até que seja tarde demais para escapar.
“Às vezes os animais estão caminhando pela floresta e nem tem fogo visível, eles pisam nas folhas, só que embaixo delas o chão está praticamente em brasa, a gente quase não vê fumaça, mas é muito quente” descreve Giuliano.
Atuação de risco
Combater o fogo no Pantanal é uma tarefa arriscada. Em agosto um zootecnista morreu ao cair no meio do fogo. Ele estava em uma das brigadas voluntárias de uma fazenda na região do Morro do Facão, em Cáceres, a 220 quilômetros de Cuiabá. Luciano da Silva Beijos, de 36 anos, teve 100% do corpo queimado. Ele foi socorrido no hospital municipal, mas não resistiu e morreu.
No dia 8 de outubro, Sebastião Mendes, artista plástico de 54 anos, foi vítima de um infarto após dias de combate incessante às queimadas, em Cáceres. Ele atuava em uma brigada voluntária próxima a sua chácara. O artista era membro da academia mato-grossense de letras e expunha em países como Bélgica, Alemanha, França e Espanha.
No mesmo dia, uma terceira tragédia, um helicóptero da Força Nacional envolvida na Operação Pantanal II, de combate aos incêndios no bioma, caiu em Poconé (104 km de Cuiabá), seu destino final era Porto Jofre. Os três tripulantes eram da Força Nacional e sobreviveram. O inspetor da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Berberick, sofreu uma fratura na perna, e foi encaminhado para um hospital em Cuiabá.
Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Cáceres é o terceiro município de Mato Grosso e oitavo do país em focos de calor, com 2.369 registros pelo satélite de referência desde janeiro até sexta-feira (9/10). Corumbá, em Mato Grosso do Sul, lidera o ranking do bioma em focos de calor.
A origem do fogo no Pantanal tem múltiplos motivos. “O Pantanal queima porque tem vegetação similar a do Cerrado, e na seca fica propício a queimada. Mas também está na pior seca dos últimos 47 anos, apesar de ter esses ciclos de dez e sete anos de cheias e secas, o período atual está pior, pois a seca tem prevalecido cada vez mais”, diz Gustavo Figueiroa, biólogo e integrante da equipe de comunicação do Instituto SOS Pantanal. “Há muito mais matéria orgânica acumulada, não há água e ainda há o homem como vetor desse fogo. Mais de 90% das queimadas tem origem humana, mas nem todas são intencionais. Há por exemplo o uso controlado do fogo, que pode ser um apoio contra as queimadas, mas precisa ser feito na época certa, quando há umidade”, explica
Para reduzir os danos futuros do fogo, o SOS Pantanal está criando um programa para apoiar as brigadas locais. A proposta é levantar fundos para que fazendas, pousadas e principalmente comunidades tradicionais e indígenas tenham treinamento e equipamentos para combater os focos de calor antes destes se tornarem grandes incêndios.
“Para evitar as queimadas precisamos juntar vários atores da sociedade. Primeiro é preciso controlar quando e como o homem pantaneiro fará esse uso do fogo. Educação ambiental é essencial, precisamos nos aproximar das pessoas que moram aqui e entender a problemática do homem pantaneiro. Precisamos integrar todos os atores locais, terceiro setor, empresários e o homem pantaneiro. E o principal é ter brigadas para resposta rápida ao fogo. Daí entra a nossa proposta de profissionalizar esses brigadistas”, diz Gustavo.
Segundo dados do instituto de meteorologia da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, há uma grande chance da atual seca se estender até 2021. O instituto aponta que, entre janeiro e fevereiro de 2021, há chance de aquecimento das águas do Oceano Pacifico Sul, com formação do fenômeno El Niño, o que influencia no clima de todo Centro-Oeste do Brasil, e Pantanal.
“O Pantanal já vinha enfrentando uma seca severa desde o ano passado, que se intensificou este ano. Ou seja, esse cenário de perigo já era previsto, mas o governo brasileiro negligenciou essas informações e, além de não atuar na prevenção, quando o fogo começou demorou para se mobilizar no combate”, afirma Mazzetti. “Mas mesmo com a crise deste ano, não só no Pantanal mas também na Amazônia e no Cerrado, o governo Bolsonaro já anunciou cortes significativos no orçamento do Ibama e ICMBio. Essa tragédia não é um acidente de percurso, é um plano bem elaborado de destruição”, completa.
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