O sol ainda não tinha raiado naquela manhã do dia 8 de maio quando o Asas da Emergência, literalmente, decolou pela primeira vez. Com médicos e profissionais de saúde e alguns materiais hospitalares a bordo, o destino era São Gabriel da Cachoeira. Localizado no extremo noroeste do Amazonas e do Brasil, este município é considerado o mais indígena do país, já que a maioria dos seus 45 mil habitantes é indígena.
Naquela sexta-feira, São Gabriel já enfrentava uma explosão de casos de Covid-19. A contaminação nessa região do Alto Rio Negro, que tem 23 povos indígenas vivendo em 750 comunidades de 11 territórios, era muito preocupante pelos impactos que o coronavírus poderia causar nessas populações historicamente mais vulneráveis a doenças pulmonares.
O fato da região, na tríplice fronteira com a Colômbia e a Venezuela, ser acessível apenas por via fluvial e aérea agravava ainda mais a situação. O isolamento geográfico, que antes tinha dificultado o avanço das frentes de desmatamento e grilagem, agora inspirava preocupação diante do claro descompasso entre o avanço do vírus e as dificuldades do Estado para superar os desafios logísticos impostos.
Em um mundo atordoado diante das milhares de mortes diárias, nós, brasileiros, tentávamos compreender a dimensão desta pandemia. Alarmadas por um histórico de recorrentes epidemias letais, as lideranças indígenas alertaram o Brasil não indígena sobre a necessidade de adoção de medidas sanitárias urgentes, capazes de prevenir ou mitigar os efeitos devastadores da disseminação do vírus entre suas populações. O movimento indígena denunciou naquele momento, inclusive, a possibilidade de um novo genocídio.
Diante desse alerta, em estreita colaboração com a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e suas organizações de base, o Greenpeace se aliançou a diversas outras entidades com o propósito de diminuir os impactos da Covid-19 nas comunidades indígenas da Amazônia, como o Instituto Socioambiental (ISA), o Expedicionários da Saúde (EDS) e a Operação Amazônia Nativa (Opan).
Assim, enquanto ainda brotava, o projeto Asas da Emergência já começava a voar.
Muita coisa aconteceu nesses cinco meses, nos quatro cantos do mundo. Na Amazônia, região em que os indígenas foram mais impactados pela Covid-19, o Asas da Emergência colaborou para garantir que mais de 63 toneladas de materiais hospitalares, de proteção, higiene e alimentos chegassem a comunidades indígenas da Amazônia abandonadas pelo Estado brasileiro. São lugares em que o atendimento à saúde básica é extremamente precário, o risco de disseminação do coronavírus era considerado alto e o acesso logístico bastante desafiador.
Foram mais de 160 mil indígenas beneficiados, de mais de 70 povos, de quatro estados (Amazonas, Acre, Pará e Maranhão). E pelo menos 96 mil km voados e navegados em 68 voos e 3 viagens de barco, cruzando toda a Amazônia Legal, desde áreas de fronteira com Peru, Colômbia, Suriname e Venezuela até o Maranhão.
O total de 648 horas transportando materiais representa 27 dias ininterruptos. Isso mesmo! É como se durante 27 dias a equipe do Asas da Emergência tivesse trabalhado, sem parar, garantindo a chegada de materiais necessários nesses lugares estatégicos. Alto Rio Negro, Alto e Médio Solimões, Alto e Médio Tapajós, Alto e Médio Purus, Alto Juruá e o Parque Indígena Tumucumaque são algumas dessas regiões em que o uso do avião e do barco foram essenciais. Cabe ressaltar que todas as doações feitas pelos diversos parceiros passaram por rigorosos processos de descontaminação.
“Atuar em um inesperado contexto de pandemia, oferecendo ajuda humanitária às comunidades indígenas foi um desafio novo para nós. Mas tornamos esta atuação uma prioridade para a organização, envolvendo uma ampla equipe e toda nossa capacidade logística e de articulação”, explica Carol Marçal, da campanha Amazônia do Greenpeace.
Ao passo que o vírus se espalhava pela Amazônia, as adaptações e os aprendizados foram sendo ajustados para lidar com o contexto de emergência. Assim, o escritório do Greenpeace em Manaus foi rapidamente transformado numa base logística para aquisição, recepção e despacho dos insumos de saúde necessários para combater a pandemia nas terras indígenas.
Parte do escritório também foi transformado em um verdadeiro ateliê de costura, onde cerca de vinte voluntários e ativistas confeccionaram, em menos de dois meses, mais de 41 mil máscaras de tecido. Outras mais de 20 mil foram adquiridas de uma cooperativa de mulheres Sateré Mawé, que vivem em Manaus. Essas máscaras foram doadas para centenas de comunidades indígenas que não contavam com este recurso básico, nem mesmo para a proteção de seus vulneráveis idosos.
Com mais de 846 mortos e 36 mil indígenas contaminados, os povos indígenas foram duramente impactados pela Covid-19
. Mais da metade dos 305 povos do Brasil foram atingidos, segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Muitos idosos não resistiram e perderam suas vidas precocemente. Considerados verdadeiras bibliotecas humanas, por serem os guardiões da cultura e da memória ancestral, suas mortes representam perdas que não podem ser mensuradas por nenhum dado ou estatística. Diversas lideranças históricas também tiveram suas vidas ceifadas pelo coronavírus, assim como crianças e adultos. Mais de 80% das mortes de indígenas ocorreram na Amazônia.
Deliberada omissão
Durante as expedições às diferentes regiões da Amazônia, tivemos a oportunidade de ouvir diversas lideranças. Uma avaliação comum estava presente em todos os relatos: diante da pandemia, os indigenas sentiam-se abandonados pelo Estado. Nara Baré, coordenadora-geral da Coiab, resume esta percepção em uma entrevista concedida em Manaus: “Pra nós, é muito claro o que o governo quer. Desde 2018, ele nunca escondeu o que queria. Para nós, é muito claro que é uma agenda institucional o genocídio dos povos indígenas do Brasil”.
A intenção de não prestar a assistência necessária aos indígenas também foi mencionada por Eládio Kokama, presidente da Organização Geral dos Caciques das Comunidades Indígenas do Povo Kokama (OGCCPIK), em Tabatinga. “Se dependesse do governo mesmo, a gente não tava mais falando… A gente fala de abandono, mas tem muito interesse, das grandes empresas, de político…”, afirmou ele. Infelizmente, o alerta feito pelos povos indígenas e seus apoiadores, no início da pandemia, de que invasores não fariam home office, não foi considerado pelo governo. As invasões e violações aos territórios e aos direitos indígenas aumentaram durante a pandemia, causando uma disseminação ainda maior da Covid-19, como ocorreu com os Yanomami
Uma das maiores preocupações expressas pelo movimento indígena diante da disseminação do coronavírus é que indígenas isolados, que não têm contato com a sociedade não indígena, fossem contaminados
, podendo até mesmo fazer com que alguns grupos deixassem de existir. “Diante dessa situação, o Asas da Emergência também atuou. Tanto de barco como de avião, transportamos doações para o Dsei [Distrito Sanitário Especial Indígena] em Tabatinga que, através do Polo Base de Atalaia do Norte, encaminhou materiais para a Terra Indígena (TI) Vale do Javari. Neste território se concentra a maior quantidade de grupos de povos isolados do mundo – sendo que dos 16 registrados, 11 já foram confirmados pela Funai [Fundação Nacional do Índio]”, declara Carol Marçal.
Uapi: rapidez e humanização
Direcionar parte do apoio logístico do Asas para a implementação de mais de 75 Unidades de Atenção Primária Indígena (Uapi) foi determinante para oferecer um atendimento mais rápido, próximo e humano às comunidades indígenas. Uapi são enfermarias de campanha bastante simples que foram instaladas em áreas estratégicas para prestar atendimento de baixa e média complexidade aos indígenas, proporcionando ambientes adaptados às necessidades dos povos e evitando que pacientes com condições menos graves fossem transportados para as cidades.
O Asas transportou cilindros e concentradores de oxigênio, geradores de energia, equipamentos elétricos, testes, colchões e tendas, dentre outros materiais, para beneficiar estas instalações, que são coordenadas pelos Distritos Sanitários.
“Quando chega um apoio como este, ainda mais neste momento, de colocar as Uapi indígenas de atendimento, é importante porque a gente se sente parte da sociedade brasileira, e a gente vê que tem alguém olhando a gente como cidadão, como pessoa”, declara Wallace Apurinã, coordenador da Organização dos Povos Indígenas Apurinã e Jamamadi (Opiaj).
Uma luta vital
Mesmo diante de tantas ameaças e perdas irreversíveis, lideranças indígenas afirmam que através da adoção de diferentes estratégias para sobreviverem, eles se fortaleceram. Do resgate da medicina tradicional e de outras práticas ancestrais à união maior entre eles mesmos
e com organizações parceiras, há uma percepção de que eles seguem ainda mais firmes e dispostos a resistirem. “A gente tem sido muito desrespeitado. Mas a gente tem se fortalecido neste contexto atual. A gente perde idosos, memórias, culturas, mas tá aqui pra resistir por eles também, pra gente nunca sumir deste mundo”, assegura o antropólogo Maurício Kokama, entrevistado durante a expedição feita pelo Rio Solimões.
A importância da conexão do Brasil indígena com o Brasil não indígena é ressaltada por Danicley de Aguiar, da campanha Amazônia do Greenpeace Brasil. “É fundamental reconhecer o apoio da sociedade à luta dos povos indígenas. A defesa de seus direitos, de suas vidas, das florestas e de todos os bens comuns em seus territórios deve ser também a luta de cada brasileiro e brasileira. E muitos já têm se disponibilizado a contribuir nesta necessária construção de um novo mundo, em que os povos indígenas são essenciais”, afirma ele.
Nesse sentido, Nara Baré declarou: “Em nome da Coiab, dos povos indígenas da Amazônia, queremos agradecer ao apoio e disponibilidade de cada um de vocês. Não somente ao apoio financeiro, mas ao apoio à luta e resistência dos povos indígenas da Amazônia, do Brasil e do mundo”.
Um longo caminho à frente
Reafirmando o compromisso de cuidar de quem cuida da floresta, o Greenpeace se manterá ao lado dos povos indígenas da Amazônia, não só apoiando o Plano Emergencial Indígena de Enfrentamento à Covid
como também denunciando as violações de seus direitos e territórios. Nesse cenário mundial de emergência climática e sanitária, continuaremos firmes em nossa missão de defender a floresta, seus povos e a vida no planeta. Esse deve ser o compromisso de cada um de nós, na construção de um mundo solidário e justo, em que as pessoas e a natureza estejam acima do lucro.
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