Lideranças indígenas protagonizam vídeos que explicitam a coerência e a profundidade de seus modos de vida, além de provocar reflexões sobre as sociedades não indígenas e suas contradições
Por Patrícia Bonilha
O atual contexto de pandemia que o mundo enfrenta hoje nos estimula, mais do que nunca, a ter uma atitude “arandu” – ou seja, “observar, ouvir, contemplar, entender” – diante dos conhecimentos ancestrais dos povos originários desse continente © Rogério Assis / Greenpeace
Para os povos Kaiowá e Guarani, alguns significados para o termo arandu são “ouvir o tempo”, “vivenciar”, “conhecer com a experiência de vida, na relação intrínseca com o ambiente”, “entendimento”, “conhecimento”. Em uma palavra, esses vastos conceitos talvez poderiam ser sintetizados como “sabedoria”. Com essa inspiração, uma série de 12 curtas-metragens produzidos pelo Greenpeace sobre as plurais realidades indígenas recebeu esse nome: Arandu. Com um minuto de duração cada, os vídeos amplificam as reflexões de oito importantes lideranças dos povos Krikati, Baré, Guajajara, Canoé, Kassupá e Macuxi, que vivem e resistem secularmente na Amazônia brasileira.
O propósito para a produção dessa série foi o de aproximar os não indígenas do caleidoscópio dos modos de vida ancestrais, cosmovisões, espiritualidades e concepções vivenciadas pelas sociedades que já viviam aqui antes da chegada dos colonizadores. Com 305 povos indígenas, falantes de pelo menos 274 línguas, o Brasil é um dos países com maior riqueza étnica do mundo. Há ainda o registro de 115 grupos de povos que vivem em isolamento voluntário – um deles no Cerrado e 114 na Amazônia Legal.
A cultura de cada povo indígena é singular e é um grave equívoco conceber ou se referir a elas como se fossem uma coisa só. Essa homogeneização é, em si, o oposto da pluralidade que caracteriza a própria existência dos indígenas no Brasil, em diversos aspectos.
Dito isso, se tem algo que é comum a eles é a perspectiva de que a vida é intrínseca à natureza. Em vários depoimentos nos vídeos, essa compreensão é explícita: a terra é mãe; os rios e toda a natureza são sagrados e têm seus Encantados (espíritos protetores); a preservação da floresta é essencial, porque significa a garantia da continuidade da vida neste planeta. Assim, defender o território da sua destruição e depredação é respeitar a própria identidade, além de ser uma missão de vida.
Desse ponto de vista, ciência e conhecimento indígena estão conectados: precisamos de solo saudável e água para a produção de alimentos e, portanto, para garantir a continuidade da nossa espécie; para isso, precisamos da floresta em pé, que é fundamental para a manutenção do equilíbrio climático e do próprio planeta; assim, é essencial proteger a natureza. Cientes disso, os indígenas colocam suas próprias vidas em risco para assegurar a continuidade da espécie humana e dos outros seres (físicos e espirituais).
Por mais que essas reflexões pareçam óbvias, sabemos
que a ganância, o egoísmo e o individualismo têm levado nossas
sociedades a inúmeras crises (ambiental, social, climática, econômica,
dentre outras). E por mais que muitos de nós, ativistas de causas
humanitárias e ambientais, por exemplo, compreendamos racionalmente essa
lógica, os indígenas as vivenciam diariamente, as sentem e incorporam.
Por isso são referências para apontar outros caminhos para nossas sociedades.
Ao observarmos seus modos de vida seculares, e como eles se sustentaram
ao longo dos tempos, torna-se difícil contestar suas verdades.
O olhar deles sobre nós
Nesse sentido, as falas indígenas reveladas nos vídeos da série Arandu também provocam reflexões e críticas sobre o modo como os não indígenas vivem, acumulam bens, consomem excessivamente, optam pelo individual em detrimento do coletivo e colocam o lucro acima da vida. Como consequência, as lideranças relatam o que testemunham em seus territórios: o grave aumento do desmatamento, da contaminação dos rios e das queimadas das florestas; invasões e roubos dos bens comuns (água, biodiversidade, madeira, terra, etc); e a ampliação dos conflitos e das violências.
O atual contexto de pandemia que o mundo enfrenta hoje e as múltiplas crises nos estimulam, mais do que nunca, a ter uma atitude “arandu” – ou seja, observar, ouvir, contemplar e aprender com os entendimentos tradicionais dos povos originários desse continente. Além de nos possibilitar conhecer melhor a nossa própria história e, portanto, nós mesmos, também nos permite estabelecermos uma outra relação com as pessoas, a vida, a natureza e o planeta como um todo. Ainda há tempo para honrarmos nossa ancestralidade e as futuras gerações.
E aqui cabe um conselho de Nara Baré, do “povo das águas”, coordenadora da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), registrado no décimo episódio de Arandu: “Vocês precisam ter uma mentalidade e uma vivência de comunidade, como a gente. Se preocupar com o outro, se preocupar com o coletivo. O que acontece, minimamente, aqui [floresta amazônica] tem um efeito muito maior para vocês, nas suas casas, onde vocês estão. Então, cuidar da Amazônia não é só cuidar para nós. É cuidar para todos!“.
https://www.greenpeace.org.br/todos-pela-amazonia
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