Chico Mendes e Mary Alegretti (Reprodução / Acervo Pessoal Mary Alegretti)
A antropóloga Mary Alegretti é muito provavelmente uma das pessoas “de
fora” que mais conviveram com Chico Mendes a partir dos anos 80, quando
ele já tinha muita clara a luta que travaria até o assassinato que o
vitimou: Mudar a situação do seringueiro explorado, sempre endividado,
subalterno e sem acesso à educação.
Mary conhecia bem essa realidade, quando visitou seringais
tradicionais pelo Acre antes de conhecer Chico, “tipo os dos livros de
história, com a figura do patrão sempre muito presente”, como ela mesma
descreve. E ele a apresentou ao “outro lado”, dos seringueiros que
articulavam entre si e com outras comunidades da região, independentes,
sobretudo.
Conheça um pouco mais sobre a história desta amizade e desta mulher
que tanto ajudou nas articulações e no persistente trabalho de Chico
pela vida e pela dignidade dos seringueiros com alguns dos trechos desta
entrevista:
Como foi seu primeiro contato com Chico?
Eu fiz a minha tese de mestrado no Acre. Conheci o Chico quando ele
era vereador em Xapuri, antes de qualquer coisa que tivesse a ver com
meio ambiente, ou com questões nacionais, internacionais ou qualquer
coisa desse tipo. Ele era um líder sindical eleito vereador, mas de
coração e de tudo presidente do sindicato de Xapuri, ou pelo menos da
diretoria do sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri.
Isso era 77, mais ou menos?
Não, eu fui pro Acre em 78 mas o conheci em 81. Nesse momento, os
sindicatos já haviam sido criados e ele tinha acabado de voltar do
processo que ele teve da justiça militar na Amazônia, junto com o Lula.
Que aconteceu depois do assassinato do Wilson, então eu conheci ele
nesse momento. Já tinha defendido meu mestrado mas tinha voltado pro
Acre, estava começando um projeto de doutorado. E aí eu o conheci assim,
porque ele era um líder sindical muito bem informado e que todas as
pessoas davam ele como referencia do que estava acontecendo no Acre
naquele momento.
E eu acho que eu fiz uma das primeiras entrevistas que ele deu na
vida, entrevista longa, gravada, onde eu pergunto tudo, porque eu não
conhecia nada, eu não tinha menor noção de quem ele era, e ele não era
conhecido, ele era um líder sindical que vivia falando do desmatamento e
das injustiças com os seringueiros. E ele lia muito, então ele lia o
Varadouro, que era o jornal famoso da época, do Acre, era um jornal
alternativo que saia todos os meses, e ele era um leitor e um divulgador
e um cara que escrevia cartas para o jornal. E eu fiz essa entrevista
com ele na sede do Varadouro, em Rio Branco. Exatamente porque os
jornalistas disseram “olha, quer saber o que está acontecendo, é o Chico
Mendes quem pode te falar”. Então foi assim que eu o conheci.
Chico Mendes e Mary Alegretti (Reprodução / Acervo pessoal Mary Alegretty)
Você publicou esta entrevista?
A entrevista está na minha tese, e junto com o meu livro eu pretendo
colocar ela em áudio, porque é muito original, é muito interessante.
Porque ele já tinha uma visão histórica, uma interpretação da história
do Acre, da história dos seringueiros e tinha convicções, conceitos
claros, ele já era uma pessoa com pensamento muito original.
Nessa época em que encontrou ele, já havia acontecido algum enfrentamento pacífico, os famosos empates?
Já, porque os empates começaram em 76. Eu conheci ele em 81, quer
dizer, já havia quase uma década de empates, os conflitos começaram em
70, eu tenho um artigo em que falo bastante das diferentes etapas do
conflito. Em 76 teve o primeiro empate e aí não parou mais. Quando eu o
conheci, como ele tinha sido eleito vereador, então ele estava numa fase
onde ele estava fazendo política, um pouco desconfortável, porque eu
acho que não era exatamente o que ele gostava, mas ao mesmo tempo ele
estava mobilizando o sindicato, que tinha ficado nas mãos de um pelego
lá em Xapuri. E ele estava mobilizando, organizando o sindicato pra
voltar a tomar conta e ele acabou se elegendo presidente do sindicato em
83, e era onde ele se sentia melhor, mais confortável.
Então eu o conheci nesse momento, e ele me convidou pra ir a Xapuri.
Ia acontecer uma assembleia muito grande lá, no final daquele mês, foi
em maio de 78, ia acontecer uma assembleia grande, para tentar mudar a
diretoria do sindicato, e eu fui. E fiquei super impressionada com o que
vi, como antropóloga eu gravei tudo, não filmei porque na época ninguém
ousava filmar, mas gravei tudo, essas reuniões todas que aconteceram
nessa época, estava o Julio Barbosa, o Raimundo de Barros, todas as
lideranças que continuaram depois que ele foi assassinado. E eu fiquei
muito impressionada mesmo.
E o que mais te chamou a atenção nessa época, nele? Era o poder de mobilização, a capacidade de oratória?
Ele não era desses líderes de inflamar as massas, ele era um líder
muito simples, mas ele passava muita legitimidade, muita sinceridade. E
ele era uma pessoa também que tinha uma capacidade de acolher todo
mundo. Ele dava valor as pessoas que se interessavam pelo trabalho que
ele fazia e pela luta dos seringueiros, ele acolhia todo mundo. Eu fui
uma das primeiras pessoas de fora que chegou, depois vieram outros, no
decorrer dos anos, mas ele sempre teve essa postura.
Chegava um jornalista ele ia lá, mostrava, ia junto, contava a
história, ele cativava a pessoa, e a pessoa se sentia ligada a ele, a
causa, e não largava mais. Eu acho que era um carisma, mas não o carisma
de quem vai lá e instiga as massas, é uma carisma de quem cria uma
certa cumplicidade. Ele foi capaz de mudar a vida de muitas pessoas, e
não só a minha. Eu larguei a universidade para apoiar o trabalho dele.
Mas não fui a única.
Para mim ele passava legitimidade, sinceridade, um cara que era
honesto, que realmente defendia o que defendia por convicção, ele não
tinha nenhuma característica de nenhum tipo de político ou daqueles
líderes populistas, demagogos. Ele tinha uma convicção, acreditava que
as coisas podiam mudar e ele ia em frente apesar de todas as
dificuldades, ele também tinha bom-humor e nós na verdade criamos uma
amizade. Isso que eu acho uma coisa peculiar, nós ficamos amigos com
essa simplicidade do movimento social. E eu fiz tudo o que eu pude pra
trabalhar com ele, pra ajuda-lo, pra dar força, pra divulgar, pra
informar, pra defender, pra tudo.
E vocês tinham afinidade política?
Se nós tínhamos as mesmas convicções políticas, eu nem sei, nunca me
preocupei em saber de qual linha era dentro do PT, se ele era a favor de
um ou de outro, nunca foi uma questão ideológica. E deixa eu te falar
porque. Antes de conhece-lo eu fiz a minha tese de mestrado em um
seringal tradicional lá no Acre. E era um seringal de patrão, aquela
coisa bem dos livros de história. E eu fiquei muito chocada.
Quando eu conheci o Chico, ele me deu a história. Ele me colocou no
contexto. Ele disse “olha, o que você viu é um lado da história. Em
Xapuri a gente tem o outro lado. Que é o lado dos seringueiros que já
não pagam renda, que já não tem patrão, que lutam contra o desmatamento,
que já são autônomos, e aqueles seringueiros que você estudou eles são
os cativos, que ainda tem patrão e tal”.
Então ele me deu essa perspectiva, e ele tinha um senso de busca por
justiça muito forte. Mas eu entendi qual era o sentido da luta dele
porque eu tinha visto o que era o seringal, o patrão, o seringueiro
eternamente endividado, eu tinha estudado essa situação. Então quando
ele falava do seringueiro liberto, do empate, da necessidade da
educação, eu tinha uma profunda empatia, porque eu tinha percebido
exatamente, sabia o que ele estava falando. E acho que ele percebeu
isso, por isso a gente tinha muita cumplicidade.
Qual era a grande vontade de Chico lá no início, quando conheceu ele?
Ele tinha uma obsessão, que era mudar a situação do seringueiro.
Porque ele tinha vivido, com a família dele, essa situação e ele tinha
conseguido sair desse processo, ser alfabetizado. Ele dava um valor
muito grande para a educação, então ele tinha essa coisa, queria mudar a
realidade do seringueiro. Esse era o pensamento dele. Depois ele juntou
a questão da floresta, do desmatamento, mas pelas razões de quem vive
da floresta sim, como meio de vida.
Quando você olha para o avanço do agronegócio na Amazônia,
todo o conjunto de projetos e leis que avançam nas esferas políticas
dificultando novas demarcações de terras, pedindo revisões nas já
existentes e outras ameaças, pensa que 25 anos depois, vivemos uma
situação tão difícil quanto?
Eu acho que tem uma grande diferença que naquela época estávamos em
um regime militar. Então qualquer oposição a qualquer política do
governo militar implicava num risco muito alto, até de vida, e num risco
muito alto de repressão e perseguição, mas por outro lado tinha uma
grande repercussão internacional qualquer manifestação que fosse contra o
regime militar e contra a politica militar dos índios. Então os aliados
principais que nos tínhamos eram primeiro a comunidade internacional
ligada a questão indígena, depois os organismos multilaterais como por
exemplo o banco mundial, banco interamericano de desenvolvimento, eles
eram, eles exerciam o papel de mediação em certo sentido.
Então acontecia alguma coisa lá no Acre, como aconteceram, com os
Yanomami, como aconteceu políticas tão ou mais fortes que as de hoje e
havia uma repercussão internacional, e essa repercussão gerava uma
pressão que constrangia os militares. Então de certa forma, a
democratização fez com que as pressões internas passassem a ter mais
importância e enfraqueceu a capacidade de mobilização, porque mobilizar
a opinião pública brasileira é muito difícil, é mais difícil do que
mobilizar a opinião publica internacional, pra questão indígena
principalmente. É uma coisa que não sensibiliza. Mas sensibilizava muito
a opinião publica internacional, então era um jogo de pressão muito
forte que se articulava lá fora e rebatia aqui dentro.
Esse é um aspecto, o outro aspecto é que o movimento social
enfraqueceu muito desde que o PT assumiu o governo. E como toda a
sociedade colocou a expectativa de que não precisava mais fazer esse
jogo de pressão porque o PT iria atender essas demandas históricas e
centenárias das sociedades indígenas e dos extrativistas, e como boa
parte das lideranças e dos interlocutores foi para o governo e não
aconteceu o que se esperava, gerou um vazio, um vazio enorme, de
capacidade de pressão, as lideranças hoje não conseguem questionar o
governo, não conseguem.
As lideranças indígenas questionam até mais do que os outros, eu acho
que eles tem uma capacidade de mobilização, de questionamento muito
alta. Eles são muito mais organizados, se eles conseguissem sensibilizar
a opinião pública e conseguissem mais respaldo, eles impediriam essas
mudanças que o governo está fazendo, só que há um constrangimento do
movimento social em geral de questionar o governo.
E muitas das ameaças de hoje são as mesmas de antes? O avanço da pecuária aliado com a expansão da soja...
A soja é um processo natural da expansão, é uma etapa seguinte da
expansão da fronteira, depois da madeira, da pecuária vem a soja, então é
prevista digamos assim, eu acho até que é mais fácil lidar com a soja
do que com a madeira e com a pecuária porque a soja tem um impacto
grande na renda local, e com a renda as pessoas também mudam de
qualidade de vida, e elas acabam tendo mais acesso a informação, a
educação, então eu não meço isso tanto assim. Apesar de que eu acho que a
Amazônia pelo fato de não ter uma situação de terra regularizada a soja
vai vir acompanhada por conflitos fundiários. Mas acho que o problema
maior é esse hoje, eu sinto que as investidas são muito parecidas,
principalmente na parte legal, de diminuição de direitos indígenas, mas
não há, não existem mecanismos que façam com que isso seja freado, então
gera-se um impasse muito maior do que no passado.
E qual o maior legado deixado, o que, na sua opinião, fica de mais marcante, que aprendemos como país?
Eu vejo esses impasses muito fortes em relação aos indígenas e muito
forte em relação aos direitos sociais digamos de toda uma população
ribeirinha, extrativista na Amazônia. Mas o maior legado sem dúvida é a
revolução do seringueiro, que é a criação das reservas extrativistas,
porque isso é permanente, e é um conceito legitimamente vindo do
movimento social, foi uma conquista e não uma concessão.
Você veja, o conceito surgiu em 85, as primeiras reservas e o
conceito formal foi firmado em 90 e você tem ciclos de criação das
reservas mas elas não param de ser criadas e não param de ser
demandadas. Então é uma coisa extremamente fértil e conectada com a
necessidade dessas comunidades. Eu acho que isso é um legado que ninguém
poderia imaginar que seria possível acontecer. E se isso começasse
hoje, certamente não aconteceria. Se essa ideia surgisse hoje e se as
reservas que foram criadas até agora tivessem que começar a ser criadas a
partir de agora isso não aconteceria.