Leo Lanna
Em meio a tanta tragédia, muitos sonhos foram interrompidos. Mas contribuir para o avanço da ciência pode ser um passo na direção de um mundo melhor e mais justo para todos.
Trabalhar com biodiversidade na Amazônia apresenta vários desafios, como relatei aqui no blog semana passada. Minha pesquisa junto ao Projeto Mantis tem foco na busca por novas e raras espécies de louva-a-deus, mas a pandemia de Covid-19 e o atual contexto político tornaram o trabalho mais árduo e perigoso. Ainda assim, temos uma nova expedição prevista para o Mato Grosso. Como conseguimos promover uma expedição na Amazônia, quando me encontro isolado na Mata Atlântica do Rio de Janeiro, sem qualquer perspectiva de mudança? De que forma seguimos produzindo nossa ciência se o principal componente, o trabalho de campo, está limitado? A resposta vem por etapas, que precisam ser revisitadas para nos lembrar que é preciso continuar.
Era Março de 2020 quando recebi a notícia de que passei para o mestrado em Zoologia, com bolsa do Greenpeace Brasil. Pura felicidade de saber que a ciência contemporânea que promovo daria um grande passo no âmbito acadêmico, em um mestrado por duas instituições fantásticas, a Universidade Federal do Pará e o Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ainda em Março de 2020, já pronto para me mudar para Belém, olhando aluguel e passagens, a pandemia atinge o Brasil. Tudo fecha, saio do Rio de Janeiro com pressa para o interior do estado, onde meus pais vivem, com algumas mudas de roupa e o computador. Deixo tudo para trás. Mal sabia que só voltaria em casa seis meses depois, apenas para buscar o resto do que ficou, e mudar-me em definitivo. Aulas online, mestrado à distância, uma nova realidade.
Foram meses de trabalho árduo e psicológico intenso. Qualquer boa notícia era soterrada pelas atrocidades cometidas pelo governo brasileiro, contra a saúde pública, contra o meio ambiente, contra o povo. Muitos dias começavam bem e terminavam na pura amargura do cenário atual. Isso porque tenho muitos privilégios, vivendo quase uma realidade paralela, de ter trabalho e estar em um interior onde, até hoje, as pessoas continuam se cuidando em relação à pandemia. Nunca passamos de 18 casos na cidade, na época das eleições (quando a aglomeração, para variar, foi incentivada pela política).
Ainda assim, por vezes duvidei se deveria compartilhar o avanço de nossa pesquisa no Projeto Mantis, as fotografias belíssimas, exaltar nossas florestas, enquanto nos noticiários elas queimavam, enquanto o povo morre diariamente. Então li o necessário livro de Eliane Brum. Em “Brasil, Construtor de Ruínas” (2019) ela começa com um trecho escrito em 2015, sobre a conjuntura política, que se encaixa com precisão no caos que hoje observamos, atônitos.
“Talvez tenha chegado o momento de compreender que, diante de tal conjuntura, é preciso fazer o muito mais difícil: criar/lutar mesmo sem esperança. Teremos que enfrentar os conflitos mesmo quando sabemos que vamos perder. Ou lutar mesmo quando já está perdido. Fazer sem acreditar. Fazer como imperativo ético.”, diz Eliane. E diz também que esperança é luxo para poucos.
Percebi que me sentia culpado por sonhar com novas expedições, por seguir produzindo ciência, em vez de estar na floresta apagando o fogo. E que a real culpa, de quem provocou o fogo, nunca chegaria. Ela recai sobre nós. Inverter o papel da culpa é especialidade da necropolítica que vivemos. Perceber isso foi uma grande mudança. Mais do que acreditar, continuar o que faço e promovo junto ao Projeto Mantis se tornou imperativo.
Voltei a criar. Elaborei junto ao Lvcas Fiat, da minha equipe, um novo modelo de expedição, imersivo, adequado e respeitoso ao cenário atual, possível diante de tamanho colapso. Decidimos trocar o isolamento no interior do Rio de Janeiro pelo isolamento na Amazônia.
Assim, em Novembro de 2020, começamos a planejar “Austral: Mantis da Amazônia”, uma expedição-vivência de dois meses na floresta que vai revelar as espécies de louva-a-deus da região e os detalhes do complexo e magnífico universo em que vivem.
Nesse caminho de preparação conheci o incrível Instituto Juruá, que trabalha na Amazônia o conceito de “otimismo conservacionista”, vi Jane Goodall lançar seu “Hopecast”, o podcast da esperança, e assisti a David Attenborough contar sua história neste planeta, enfatizando o quanto precisamos pensar em nossa biodiversidade. Reafirmei o quanto é possível, e necessário, trazer boas notícias, compartilhar belas histórias, celebrar a vida selvagem da Amazônia, seus povos, sua verdadeira riqueza.
Escolhemos como destino a RPPN Cristalino. Apresentamos a proposta da expedição, que ainda dependia de apoio financeiro, tão escasso em nossa ciência, e encontramos quem acreditasse. Dona Vitória, fundadora da reserva, uma mulher com história de vida fortíssima, enfrentando desafios para manter uma floresta viva em meio ao voraz desmatamento no Mato Grosso. Com apoio da Fundação Ecológica Cristalino, presidida por ela, conseguimos viabilizar a viagem
Austral significa “ao Sul”, em referência à localização da reserva, no Sul da Amazônia, bem no Arco do Desmatamento. A reserva é um oásis de resistência que, junto a unidades de conservação públicas, privadas e terras indígenas, ainda mantém viva a fauna e flora exuberantes desse pedaço de floresta amazônica. Não é incomum encontrar por lá espécies novas e raras, e são elas que iremos buscar.
Essa jornada será compartilhada aqui no blog e nas redes do Greenpeace, na busca por nos lembrar a importância da pesquisa brasileira e revelar nossa incrível biodiversidade. Caminharemos pelas noites da Amazônia, quando a floresta é mais vibrante. Viveremos sua história natural de perto, tratando com respeito e carinho os seres que vamos encontrar. Cercados por uma rede de colaboradores fantástica, queremos mostrar que é preciso (e possível) continuar. Atentos e fortes, seguiremos.
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