por
Carolina Marçal e Patrícia Bonilha
Em duas inéditas marchas, indígenas, camponesas, quilombolas,
ribeirinhas, pescadoras, sem-terra e mulheres de diversas outras
comunidades tradicionais de todo o país pararam Brasília em defesa da
VIDA!
O país nunca havia vivido um momento como este. Na manhã da última
sexta-feira (9 de agosto), Dia Internacional dos Povos Indígenas, três mil mulheres
deixaram suas casas e aldeias, despediram-se de seus filhos, netos,
maridos e das – muitas vezes extensas – famílias e seguiram para um
mesmo destino: Brasília, a capital do país. Com o propósito de
realizarem a 1a Marcha das Mulheres Indígenas, elas
compartilhavam também uma necessidade essencial: a de lutar pela VIDA,
pelos seus territórios e pelos direitos originários e constitucionais
que garantem a continuidade de suas existências, respeitando a
pluralidade de seus povos e modos de vida.
Após dias em ônibus, barcos e carros para chegar ao ensolarado e seco
Planalto Central, com suas pinturas faciais e corporais, seus trajes
tradicionais e munidas de seus maracás, essas mulheres indígenas,
representantes de cerca de 110 povos, ocuparam os
gramados da Funarte, onde estavam acampadas, e a Esplanada dos
Ministérios evocando diversos cantos e danças rituais. Produzia-se,
assim, uma incrível e singular vivência em que as mulheres
compartilhavam entre si a ancestralidade de suas diversas civilizações.
“Este encontro nos fortalece tanto na espiritualidade como na
política”, revelou Eunice Kerexu, do povo Guarani-Mbyá, ex-cacica da
Terra Indígena Morro dos Cavalos, de Santa Catarina. Era disso mesmo que
se tratava, um histórico e inédito ato político, independente de
partidos, focado na defesa dos direitos dos povos originários do Brasil.
Com o lema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, as mulheres
exigiram que a grave ofensiva aos seus direitos em curso seja
interrompida, que a demarcação e efetiva proteção aos seus territórios
sejam garantidas e que cada um de seus modos de vida tradicionais sejam
respeitados. “Não aceitaremos nenhuma política genocida,
etnocida ou ecocida. Em nome da nossa ancestralidade, da nossa Mãe Terra
e de toda a vida, seremos sempre mulheres de resistência”, bradou Sônia Guajajara do caminhão de som, na frente do prédio do Ministério do Meio Ambiente.
Sementes de inspiração
Ontem (14) cerca de 100 mil mulheres, vindas de todos os estados do país, uniram suas vozes às indígenas.
Em sua maioria camponesas, elas também eram pescadoras, quilombolas,
ribeirinhas, sem-terra, quebradeiras de coco, vazanteiras e membros de
dezenas de outras comunidades tradicionais – que a maioria dos
brasileiros desconhece. Em sua 6a edição, a Marcha das Margaridas
além de colorir a cinzenta – e, nesta época, empoeirada – Esplanada dos
Ministérios de diversos tons de lilás, também marcou com urucum e
jenipapo – tinturas naturais utilizadas pelas indígenas para fazerem
suas pinturas – as ruas de Brasília.
Segundo diversas falas das participantes, as duas emocionantes marchas foram pautadas pelo AMOR. A repetida mensagem era: “é
pelo amor a esta terra, às suas águas, florestas, animais e plantas que
nós resistimos a qualquer projeto que priorize a morte, em detrimento
da vida. Foi o amor que nos trouxe aqui e é pelo amor que seguiremos,
todos os dias, na luta pela vida. Não só pela nossa vida, mas a de todos
os seres vivos”.
Sintonizadas, essas mulheres do campo, da floresta e da cidade
denunciaram o drástico aumento da violência no campo; o desmatamento da
Amazônia e do Cerrado; a entrega dos bens naturais – como água,
biodiversidade e minérios – do país a corporações brasileiras e
estrangeiras; a paralisação da demarcação das terras indígenas; a
invasão e destruição dos territórios tradicionais; a contaminação
causada pelos agrotóxicos; a criminalização de lideranças de seus
movimentos; e diversas políticas do atual governo que sequestram
direitos e as levam a se preocupar com fantasmas como a fome e a
miséria, que voltam a rondar as casas de milhões de brasileiros.
Fonte de muita inspiração, apesar dos tantos desafios que tiveram que
enfrentar (como o intenso frio no acampamento, a distância da família e
algumas não falarem português, dentre outros), essas mulheres ocuparam
as ruas da Capital Federal por muitas horas para dizer que há
muitas outras formas de se viver, com dignidade, respeito e abundância,
quando não se coloca o lucro acima da vida e quando não se transforma
tudo-tudo-tudo em mercadoria. Cheias de empatia, elas sugerem
priorizar a solidariedade, a agroecologia, o cuidado, o feminismo, a
democracia, a soberania, a sustentabilidade.
De netas a bisavós
Em ambas as marchas, várias gerações estavam presentes, netas, mães,
tias, filhas, avós e até bisavós, todas estavam ali. Algumas idosas
apoiavam-se entre si durante a marcha. Outras tocavam tambor,
intensamente, dando ainda mais brilho aos seus cabelos totalmente
brancos. Em um momento em que os direitos dessas mulheres estão sendo
retirados, havia uma espécie de vibração diferente, positiva,
entusiasmada. Cada troca de olhar trazia força. Cada sorriso transmitia
confiança. Cada toque de atabaque, berimbau, maracá empoderava
ainda mais aquelas meninas, mulheres, anciãs. Foram momentos de
alimentar a esperança.
Vale ressaltar que, especialmente, na Marcha das Mulheres Indígenas,
muitas mães amamentavam seus bebês, que estavam, graciosamente, por
todos os cantos. Uma percepção sutil, mas que explicita algo bastante
real: para os povos indígenas sobreviver significa lutar e, por isso, é preciso que comecem cedo, muito cedo.
Indiscutivelmente, temos muito o que aprender com a sabedoria
e a sensibilidade das anciãs indígenas, camponesas e de tantas
comunidades tradicionais deste tão sofrido – e, ao mesmo tempo, tão pluralmente rico – Brasil.
Leia aqui o Documento Final da 1a Marcha das Mulheres Indígenas: “Nosso território: nosso corpo, nosso espírito”
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