Rosana Villar
A fumaça das queimadas na Amazônia está relacionada ao aumento de internações por doenças respiratórias e até ao desenvolvimento de câncer
A depender da época do ano e do local que se vá a Amazônia, você tem a chance de ver dois tipos bastante distintos de “névoa”. Uma é a névoa da manhã, da umidade que evapora de rios e árvores, inundando a atmosfera de água. A outra é a névoa das queimadas, uma camada densa de fumaça que encobre regiões inteiras, às vezes por meses. A principal diferença entre elas é que, enquanto a primeira só traz benefícios, a segunda prejudica a saúde e pode levar até à morte.
Todos os anos, na época do verão amazônico, que vai de julho a outubro, municípios como Porto Velho (RO) vivenciam esse impacto direto das queimadas: a fumaça. Na Amazônia, o fogo raramente ocorre de maneira natural, ele é comumente usado no processo de desmatamento, seja para finalizar o processo de destruição ou para degradar e enfraquecer grandes extensões de floresta – justamente na época do ano com menos chuvas.
De agosto de 2020 a julho de 2021, foram detectados pelo sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 132.955 hectares com alertas de desmatamento por corte raso no estado de Rondônia. Em setembro deste ano, a capital Porto Velho foi o município com mais focos de calor de toda a Amazônia.
As queimadas afetam diretamente a biodiversidade e nos afastam das metas internacionais para conter a crise climática. Mas entre os primeiros impactados estão, sem dúvida, as pessoas que vivem na região, pois o ar que respiram torna-se tóxico. A fumaça das queimadas está repleta de partículas minúsculas (sulfatos, nitratos, amônia, cloreto de sódio, fuligem, pós minerais e água) com menos de 2,5 micrômetros de diâmetro (PM 2.5) ou menores, que podem viajar pela atmosfera por quilômetros de distância, levadas pelo vento.
Esses resíduos, chamados de material particulado (PM – particulate matter) ,podem se acumular nos pontos mais terminais do nosso sistema respiratório, os alvéolos, onde ocorre a hematose, que é a troca de gás carbônico por oxigênio. A partir dali, esse material entra na corrente sanguínea, causando complicações de saúde imediatas e de longo prazo.
Em Rondônia, de agosto de 2020 a julho de 2021, foram detectados pelo sistema Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), 132.955 hectares com alertas de desmatamento por corte raso. Em setembro deste ano, a capital Porto Velho foi o município com mais focos de calor de toda a Amazônia. O estado é um dos mais impactados pela fumaça.
A fumaça que mata e desmata
Os mais acometidos pela poluição causada pelas queimadas na Amazônia são os idosos e as crianças. “As crianças, por terem o sistema imunológico ainda em desenvolvimento e por apresentarem um aparelho respiratório anatomicamente menor”, explica o médico pediatra Daniel Pires de Carvalho, diretor geral adjunto do Hospital Infantil Cosme e Damião, de Porto Velho (RO).
No hospital Cosme e Damião, que é referência no tratamento a crianças no estado, o aumento nos atendimentos e internações na época das queimadas já é uma praxe anual, para a qual o sistema deve estar sempre preparado. Segundo Daniel, este ano, em julho, o volume de atendimentos de crianças por problemas respiratórios foi 50% maior do que o registrado em janeiro, quando a qualidade do ar era melhor e não contava com o período seco e a fumaça das queimadas.
Entre os sintomas mais comuns causados pela interação com o material particulado estão ardência na garganta e narinas, dor ao respirar, dor de cabeça e tosse persistente. Mas os efeitos podem ser ainda mais devastadores para pacientes que já contam com alguma comorbidade, como hipertensão, asma ou doença pulmonar obstrutiva crônica.
“Se a criança ou adulto ficar bem, não apresentar nenhuma piora no seu estado de saúde como por exemplo dificuldade para respirar, falta de ar, a gente vai levando. Agora, se há evidência de uma complicação, é importante procurar logo um serviço médico para diagnosticar e fazer o tratamento correto”, alerta o pediatra.
Em agosto de 2020, a Human Rights Watch, em parceria com o Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) e o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), lançaram a nota técnica “Impactos dos Incêndios Relacionados ao Desmatamento na Amazônia Brasileira Sobre Saúde”, onde analisam o impacto das queimadas sobre a saúde das populações amazônicas em 2019.
Segundo o documento, 2.195 pessoas foram internadas nos municípios que fazem parte do bioma Amazônia em 2019 devido a doenças respiratórias atribuíveis ao aumento da poluição causado por incêndios relacionados ao desmatamento, e o número de internações aumenta substancialmente no período do verão amazônico, quando há uma intensificação das queimadas: mais da metade das internações ocorreram de agosto a novembro daquele ano. Estima-se que os custos públicos totais associados às hospitalizações devidas aos incêndios relacionados ao desmatamento foram de R$ 5,64 milhões (USD 1,4 milhão).
“Todo período em que a gente tem a piora da qualidade do ar por conta de queimadas, aumenta a demanda nas unidades de saúde, aumentam os custos de saúde, por conta dos procedimentos que você tem que dar para a pessoa, e essa questão econômica afeta as famílias também, é medicamento que tem que comprar, deslocamento que tem que fazer. Então é um prejuízo não só na área da saúde, mas na sociedade como um todo”, avalia Arlete Baldez, médica epidemiologista, gerente técnica da vigilância epidemiológica Agência Estadual de Vigilância e Saúde estado de Rondônia (Agevisa).
A Agevisa acompanha a qualidade do ar nos municípios e, por meio do programa Vigiar – que surgiu da necessidade de acompanhar o avanço de doenças respiratórias relacionadas ao Covid-19 – para antecipar os possíveis impactos no sistema de saúde. Para isso, o órgão compara os dados de qualidade do ar com a ocorrência de doenças “marcadoras”, aquelas que pioram quando há influência ambiental, como a poluição. “A gente acompanha e faz um alerta para esses municípios para que se preparem, quando está tendo muita fumaça, muita queimada, material particulado e que é esperado que aumente os atendimentos de asma e bronquite. Na verdade, nós cuidamos mais das consequências desse problema do que da solução do problema propriamente dito”.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), a exposição à poluição causa 7 milhões de mortes prematuras todos os anos no mundo e reduz a expectativa de vida da população. Em setembro deste ano, a organização revisou as diretrizes Globais para a qualidade do ar. Com relação ao material particulado, a média diária não pode passar de 25 μg/m³.
Mas, já em julho , a qualidade do ar em Porto Velho chegou a níveis muito superiores à média estipulada pela OMS. O gráfico abaixo, publicado pela Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR), mostra que, no dia 10 de agosto deste ano, a concentração de material particulado no município chegou à 160 μg/m³ . De 30 dias analisados pelo sensor do MP/RO, apenas cinco dias tiveram qualidade do ar dentro do recomendado pela OMS.
Reação em cadeia: Fumaça favorece complicações por Covid-19
Não é possível dizer com precisão o impacto da fumaça na população amazônica, já que a maioria dos dados disponíveis consideram apenas as internações, desconsiderando todo um universo de pessoas que não chegam a buscar atendimento. Sem contar os efeitos colaterais e de longo prazo.
Um levantamento realizado pelo InfoAmazônia, para o projeto Engolindo Fumaça, aponta que em 2020, a fumaça das queimadas esteve relacionada a um aumento de 18% nos casos graves de Covid-19, nos 5 estados com mais fogo da Amazônia durante as queimadas do ano passado (Amazonas, Acre, Rondônia, Mato Grosso e Pará). Segundo o estudo, Rondônia foi um dos estados mais afetados, onde em setembro, pior mês do ano, a chance de dar entrada no hospital por complicações da Covid-19 era 66% maior, que uma pessoa em um ambiente com qualidade do ar dentro dos limites aceitáveis.
Essa maior “vulnerabilidade” se deve ao comprometimento do sistema respiratório causado pela fumaça, como esclareceu Deuzilene Vieira, pesquisadora em saúde pública da Fundação Oswaldo Cruz de Rondônia (Fiocruz), onde uma equipe de microbiologia analisa a interação entre a fumaça e a proliferação de vírus e bactérias. “Esses vírus estão presentes durante todo o ano, mas a partir do momento que muda o contexto comum, com mais fumaça e maior confinamento, eles têm um aumento. Temos aí os adenovírus, o vírus respiratório, os rinovírus, o próprio influenza sazonal, os próprios coronavírus, não apenas o SarsCov-2. Juntamente com isso vem a proliferação de algumas bactérias, o que acaba favorecendo às vezes uma evolução das complicações”, explica.
Mas o que podemos ver hoje é só a ponta do iceberg. O material particulado pode continuar agindo por muitos anos no corpo humano. A exposição crônica a essas partículas pode favorecer o surgimento de tipos de câncer, como o câncer de pulmão, doenças hematológicas, hipertensão e Acidentes Vasculares Cerebrais (AVC).
E você e o mundo com isso?
Imagem mostra a fumaça e circulação dos ventos em 15 de setembro de 2021. (Fonte: Earth)
“A fumaça, o material particulado, não prejudica só quem tá na sua proximidade. Ela se desloca quilômetros e vai atingir pessoas que estão realmente muito distantes do local da queimada, Vai muito, mas muito mais além”, ressalta Arlete Baldez. De fato, eventos como o de agosto de 2019, quando o dia virou noite em São Paulo, onde materiais particulados são levados para regiões distantes, estão se tornando comuns nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, à medida que as queimadas avançam na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, afetando a qualidade do ar muito além dos limites dos biomas.
As queimadas e incêndios florestais emitem gases do efeito estufa na atmosfera, agravando a crise climática que vivemos. Os dados referente à emissões provenientes da queima de florestas são subestimados, mas a mudança do uso da terra corresponde por 44% das emissões totais do país, segundo dados do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG), e o fogo é uma das etapas do desmatamento.
“Vivemos atualmente uma crise de saúde, uma crise climática e uma
crise da biodiversidade. Um acúmulo de desafios que estão interligados”,
afirma Cristiane Mazzetti, da campanha de Amazônia do Greenpeace.
“Desmatar e queimar as florestas adoece as populações locais, gera
perdas incalculáveis para a diversidade de animais e plantas dessas
regiões, além de contribuir para o aumento da frequência e intensidade
de extremos climáticos, como secas e enchentes, que já afetam milhares
de pessoas no mundo todo. O Brasil, como país, e todos aqueles que têm
alguma relação direta ou indireta com a destruição da Amazônia precisam
assumir e cumprir o compromisso de proteger a floresta, afinal, proteger
a floresta é também uma questão de saúde pública”.
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