Thursday, September 14, 2023

O Dia da Amazônia na Era do Fogo

 Rosana Villar

 

A maior floresta tropical do mundo é essencial para o equilíbrio do clima, mas está cada vez mais perto de um ponto de não-retorno. Para evitar isso, será preciso mudar o “sistema”

Queimada em desmatamento recente na Gleba Abelhas, registrada no município de Canutama, Amazonas, em agosto de 2023. Foto: Marizilda Cruppe/ Greenpeace
© Marizilda Cruppe / Greenpeace

É 2023 e o mundo observa, estarrecido, o registro das maiores temperaturas da história. O planeta está em chamas, em uma resposta da natureza à nossa falta de ação contra a crise climática. Mas, na Amazônia, o fogo que transforma florestas em cinzas tem uma causa um pouco diferente – a ganância. 

A exploração infinita de recursos naturais finitos é o problema que está na raiz de ambas as situações. A perpetuação de um modelo que gera lucro para um pequeno grupo de pessoas, enquanto arrasta toda a sociedade para uma emergência climática, ambiental e social. Parece que brincamos tanto com fogo, que estamos bem perto de nos queimar.  

Nesse Dia da Amazônia, gostaria de poder apenas exaltar a exuberância de seus rios, árvores e pessoas. Mas precisamos dar um “pause” nesse filme para observar com cuidado em que ponto chegamos, e refletir até onde estamos dispostos a ir pela preservação da floresta e de tantos outros ambientes naturais pelo mundo. 

Amazônia, a gigante verde

A Bacia Amazônica ocupa uma área de 6,7 milhões de km², espalhada por nove países da América do Sul: Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela. A maior parte fica no Brasil, que guarda 60% desta gigantesca floresta e a maior parte da população que vive na região, cerca de 28 milhões de pessoas, de um total de 38 milhões da Pan-Amazônia. 

A Amazônia é tão grande quanto diversa. Em seus ecossistemas, como florestas, mangues, campos e montanhas, vive 10% da biodiversidade da Terra. E além de armazenar de 150 a 200 bilhões toneladas de CO2eq (dióxido de carbono equivalente) em seu solo e árvores, a floresta ainda lança na atmosfera 20 trilhões de litros de água por dia, o que funciona como um grande ar condicionado global. 

Apesar da magnitude dos números, a floresta está perigosamente ameaçada. A ciência alerta sobre um  ponto de ruptura do equilíbrio de grande parte da Amazônia, o chamado ponto de não retorno, onde espécies e uma série de benefícios e serviços ambientais hoje fornecidos por ela serão perdidos. As primeiras estimativas sobre o assunto sugeriam que este ponto poderia ser atingido quando o desmatamento da floresta alcançasse 40%.

Mas um estudo mais recente, publicado em 2018 na revista Science Advances pelos pesquisadores Thomas E. Lovejoy e Carlos Nobre, considerou os impactos da “sinergia negativa” entre desmatamento, mudanças climáticas e uso generalizado do fogo e recalculou essa estimativa, e hoje acredita-se que se a destruição atingir de 20 a 25% da floresta, é fim de jogo para nós. 

Na verdade, esse processo já pode até ter começado. Um estudo publicado em 2021, liderado pela pesquisadora Luciana Gatti, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), indica que isso já está acontecendo em florestas no sudeste amazônico, entre Pará e Mato Grosso, que deixaram de retirar CO2eq da nossa atmosfera, e passaram a ser grandes emissores de um dos principais gases do efeito estufa.

Capitalismo selvagem

Até hoje, a Amazônia já perdeu 17% de sua vegetação nativa, sendo que no Brasil essa porcentagem chega a 21%, segundo dados da organização Mapbiomas.  Outro levantamento recente, feito pelo Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais (LASA), mostra que só nos últimos 10 anos as cicatrizes de incêndios e queimadas na Amazônia Legal já atingiram uma área maior que a França (62 milhões de hectares). 

E de onde vem tanta destruição? Vem da ideia de que a Amazônia é um grande campo desabitado e que a floresta em pé não tem valor nem serventia, que deve ser destruída para dar lugar à produção de carne, soja, óleo de palma, petróleo, ouro, grilagem e especulação de terra para que proporcionem lucro imediato para seus investidores e especuladores, não importando quantas vidas sejam perdidas no caminho. Um clássico caso de capitalismo selvagem. 

Não estamos falando de pequenos desmatadores, nem de criminosos solitários. Trata-se de um esquema complexo e fartamente financiado pelo sistema financeiro global, que alimenta a grilagem, a violência e a destruição florestal para a produção de commodities. 

Gado em área embargada pelo Ibama no município de Aripuanã (MT). © Bruno Kelly / Greenpeace

Balancete positivo

Na Amazônia, o fogo é usado no processo de desmatamento. Por ser uma floresta tropical úmida, a Amazônia não queima sozinha. Antes é preciso enfraquecer a floresta, retirando as árvores maiores, até que ela esteja seca e fragilizada o suficiente para ser queimada, geralmente na época mais quente na região, que vai de julho a outubro. Para que uma área seja completamente desmatada, ela provavelmente será submetida a vários ciclos de degradação e fogo, o que pode levar meses e até anos. Um processo longo e caro, que só é possível porque o dinheiro continua jorrando para a mão dos desmatadores. 

Mas com tudo que sabemos hoje, é inadmissível que governos sigam investindo neste modelo econômico destrutivo e excludente, enquanto empresas fingem não ver os danos causados por suas operações e bancos sigam injetando dinheiro nesses setores. Também não há mais tempo para discursos sem conexão com a realidade. São necessárias ações imediatas para zerar o desmatamento da Amazônia, e por parte de todas as esferas governamentais, empresas, setor financeiro e demais membros da sociedade, o que não vem acontecendo na velocidade que precisamos.

A indústria da carne vem renovando e quebrando promessas há quase 15 anos. Empresas como a JBS, por exemplo, gigante brasileira de produção de carne, segue constantemente envolvida com casos de compra de gado de áreas desmatadas na Amazônia, mas se prepara para abrir uma Oferta Pública Inicial de ações (IPO) na bolsa de valores de Nova Iorque. Pois o importante é maximizar os lucros.

No Brasil, depois de quatro anos de aumento da destruição sob o governo de Jair Bolsonaro, a chegada de Lula à presidência trouxe esperança de tempos melhores. Mas, mesmo com perceptíveis avanços na agenda ambiental, o governo não pensa em abrir mão de explorar Petróleo na Foz do Amazonas.

Esse tipo de distorção da realidade acontece na Amazônia, mas também acontece no Cerrado, na Floresta da Bacia do Congo, no Chaco, até no Artico! Até quando o crescimento infinito e o balancete positivo de grandes corporações será mais importante que garantir a vida de basicamente todo o mundo? 

Será o Piroceno?

Em 2015 o especialista em história do fogo, Stephen Pyne, nos apresentou o conceito de Piroceno. Do seu ponto de vista, a Terra estaria passando por uma nova Era Geológica, influenciada pelo poder da humanidade de alterar o ambiente com o uso do fogo: se o fogo nos permitiu evoluir, o mesmo fogo, na queima de combustíveis fósseis e florestas, poderia ser nossa desgraça. 

Já ultrapassamos o ponto em que a Amazônia precisava ser salva. Agora quem precisa ser salvo somos nós, e é necessário colocar em prática todas as soluções disponíveis: zerar o desmatamento, reflorestar, estabelecer compromissos de mercado, fortalecer o ativismo, estruturar um novo sistema alimentar, justiça climática, o fim dos fósseis! Temos que desmontar este sistema, peça por peça, e construir algo novo, algo que faça sentido para os tempos que vivemos. 

Nesse Dia da Amazônia, desejamos à floresta um futuro de paz e total respeito.

 

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