Sunday, September 6, 2020

À revelia de um governo que segue negando aos indígenas o direito à vida, povos criam estratégias para resistir à Covid-19

por Camila Doretto  

Fechar acessos ao território e compartilhar informação na própria língua são algumas das ações de enfrentamento

Entrega de doações transportadas pelo Asas da Emergência no município de Marechal Thaumaturgo (AC) © Valentina Ricardo / Greenpeace

Nesta segunda reportagem sobre as conversas feitas com lideranças indígenas durante os voos do Asas da Emergência entre os dias 28 de julho e 1 de agosto, saiba como alguns povos de áreas remotas de fronteira têm enfrentado a luta contra o vírus, e pela vida, no chão da floresta amazônica. 

A proximidade de algumas aldeias com a cidade grande fez com que os Huni Kuĩ, que vivem no estado do Acre e sul do Amazonas

, fossem drasticamente atingidos. Dos cerca de 15 mil indígenas, havia 538 pessoas contaminadas até a última atualização, em 02 de setembro, um número ainda subnotificado por conta da falta de disponibilização de testes e de informações sobre os que vivem nas cidades.

Assim que a pandemia acometeu seu povo, Ninawá Inu Huni Kuĩ, presidente da Federação do Povo Huni Kuĩ do Estado do Acre (Fephac), conta que as pessoas sofreram um forte impacto psicológico. Trabalhar a comunicação na própria língua foi fundamental para lidar com uma enxurrada de informações desencontradas e o medo. 

“Nós fizemos materiais em áudio para divulgação nas rádios e para envio por aplicativos de mensagem, tudo na nossa língua. Passamos informações sobre como se dá a transmissão do vírus, o que isso pode causar, como se prevenir e, principalmente, como fazer a prevenção dos mais vulneráveis, caso dos anciãos, das crianças, grávidas e pessoas que já  têm problemas respiratórios”, relata Ninawá. 

As organizações indígenas que atuam localmente, como a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), também deram apoio na elaboração desses materiais informativos. Caso do podcast “Atenção, Txai!”, que vem fazendo uma campanha de orientação e conscientização aos povos indígenas nas redes sociais da capital Rio Branco e nos 22 municípios do estado. A expressão “Txai” é muito usada no mundo indígena acreano que, na raiz, se traduz por “cunhado”, mas o significado original se ampliou e hoje é usado também para se referir a alguém que é parceiro, em quem você confia e com quem você tem sincera amizade, trazendo assim o espírito de aliança entre os povos e os que habitam a cidade.  

“Nós estamos desde março em uma campanha intensiva via rádio, podcast, whatsapp e radiofonia para informar aos indígenas a gravidade do vírus e a importância de permanecer em casa. É importante destacar que ficar isolado por meses não é fácil pra ninguém. E no caso dos indígenas, para que eles possam permanecer em suas terras, são muitos os elementos que precisam ser vistos como, por exemplo, dar condições para caça e pesca, garantir segurança alimentar, enfim, olhar as necessidades de cada povo e dar condições para o isolamento”, afirma Vera Olinda Sena, coordenadora executiva da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre).

As lideranças destacam que o respeito à língua e a luta por condições mínimas de assistência para se manter em seus territórios, evitando assim que indígenas com casos menos graves tenham que ir até a cidade para se tratar, têm sido ações de extrema importância para o enfrentamento da pandemia. Uma vez que o vírus chegou a essas áreas, as Uapi, operacionalizadas pelos Distritos Especiais de Saúde Indígena (Dsei), tornaram-se fundamentais para mitigar os impactos da pandemia.

Uapi sendo construída na aldeia Kakory, Terra Indígena Catipari/Mamoria, Pauini (AM) © Amilton Apurinã

Conforme já mostramos em uma reportagem feita em São Gabriel da Cachoeira, em muitos casos, as Uapi são uma chance de aliar o tratamento de casos leves e moderados com um elemento que, segundo lideranças e representantes de organizações indigenistas locais, têm sido fundamentais neste momento para aumentar a imunidade e para a saúde em geral, o uso da medicina tradicional indígena. 

E apesar de ser um elemento muito importante a ser considerado, não isenta o poder público de sua responsabilidade de lidar com a doença, como bem coloca Vera Sena, da CPI-Acre. “As informações que a gente tem recebido do resultado dos indígenas que são atendidos próximos às aldeias, aliando a medicina branca com a dos pajés, é uma coisa de alto respeito. E isso é bem importante valorizar. O que não significa que a gente tenha que minimizar a necessidade de testes, de atendimento e de todas as medidas necessárias de se fazer um trabalho para aumentar a imunidade das pessoas. O coronavírus ainda é um problema muito sério, a pandemia existe, o pós pandemia também vai ser complicado e a gente precisa se preparar para isso”, destaca.

Segundo Wallace Apurinã, a morte de parentes que foram para os grandes centros urbanos para tratar da Covid-19 e a falta de um atendimento de saúde que incorpore e respeite o modo de vida indígena são fatores que aumentam o medo dentro do território. “Meus parentes não querem vir pra cidade. Eles falaram isso pra mim. Eles disseram: nós vamos morrer aqui, mas nós não vamos pra cidade porque aqui nós temos esperança de poder vencer o vírus aliando a ciência do branco à nossa ciência também. Por isso é tão importante a gente ter as UAPI dentro ou nas proximidades das aldeias”, afirma. 

Manter-se no território e isolar-se completamente não é uma realidade possível para muitos dos povos. “Os esforços de auto-isolamento para tentar se proteger fizeram com que alguns começassem a passar muitas dificuldades. Por conta disso, várias instituições locais têm se articulado não só para suprir o fornecimento de material de limpeza e higiene, mas também para garantir a alimentação, pois em muitas terras as roças já se esgotaram. Apesar de em alguns territórios ainda ser possível viver da caça e da pesca, em muitos outros, isso não é mais possível”, explica Ivanilda Santos, Coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) da Regional Amazônia Ocidental.

Ashaninka bloqueiam entrada pelo rio para barrar a pandemia

Na cidade de Marechal Thaumaturgo, fomos recebidos por Wewito Piyãko, presidente da Associação Ashaninka do Rio Amônia, Apiwtxa. Apiwtxa também é o nome da aldeia de Wewito, na Terra Indígena Kampa do Rio Amônea, que fica a 3 horas de viagem dali (em barco movido a motor rabeta), e onde há  uma população estimada de mil pessoas. 

Wewito explica que Apiwtxa significa “estar junto”, “união” – conceito que dá pistas sobre a força de uma ação que tem garantido que nenhum Ashaninka tenha se contaminado pelo novo coronavírus até agora. “Desde que a gente começou a acompanhar o avanço da doença, a nossa primeira preocupação foi encontrar soluções para evitar que as famílias viessem ao município”, conta. 

Após muitas reuniões dentro do território, foi decidido que a associação presidida por Wewito ficasse responsável por fazer a ponte entre os Ashaninka e Marechal Thaumaturgo, a cidade mais próxima. E como os Ashaninka estão no Acre, mas também no Peru, onde vive a maior parte,  aproximadamente 98 mil

pessoas, eles fizeram uma articulação para além da fronteira.  “A gente fez um acordo para garantir a proteção de todos. Então também estamos dando apoio para esses parentes com os itens que eles mais necessitam para que eles também se cuidem e para que ninguém precise passar de lá pra cá”, explica.

Além da articulação para proteção de todos, fechando as passagens dentro e fora do Brasil, os Ashaninka também fizeram seu próprio sistema de auto-isolamento na beira do Rio Amônea. “Como o rio é o principal acesso ao território, nós nos revezamos e a cada semana uma família fica na beira fazendo a vigilância para ninguém passar. E se a gente não tá deixando ninguém entrar dentro da nossa terra, é porque é isso que tem que ser feito neste momento e todo mundo tem que entender. Esse vírus não é uma coisinha qualquer. É um problema muito sério e se a gente não estiver preparado e organizado pra se cuidar, a gente vai acabar perdendo muita gente. E nós não queremos isso, assim como todos também não querem”, diz Wewito.

Antes de retornar ao território, Wewito estava fazendo seu isolamento em um terreno pertencente aos Ashaninka, em frente ao município de Marechal Thaumaturgo, só que do outro lado do rio. O que ele comprou para levar para seu povo foi entregue ali na beira, sem ele ter precisado pisar na cidade. Nessa área onde os Ashaninka fazem a quarentena há algumas casas com estrutura suficiente para que possam permanecer o tempo que for necessário. “E ainda assim, quando eu chegar na comunidade, eu fico isolado na minha casa por mais uma semana”, explica. 

Os Ashaninka têm um histórico processo de busca de autonomia

que também abraçou os parentes do outro lado da fronteira e demais populações ao seu redor. É graças a essa aliança que hoje eles conseguem construir um cerco, até então sem brechas, para impedir a entrada da pandemia.

Para nós, este momento é um alerta para a humanidade, para pensarmos melhor sobre nós mesmos e que rumo nós estamos seguindo. Quando uma comunidade não está organizada é muito mais difícil trabalhar e conseguir tomar decisões que beneficiem a todos. Se nós estamos unidos, ficamos muito mais fortes”, diz Wewito. 

Uma reação à ausência

Diante de um cenário em que os mais vulneráveis seguem à margem da lista dos que mais deveriam ser assistidos em plena pandemia, caso dos indígenas, alguns povos agiram por conta própria e se articularam localmente para lutar contra o novo coronavírus. E à revelia de um governo federal que publicamente lhes nega o direito à vida, seguem com a força e a determinação de quem decidiu desobedecer o plano oficial. Mas é importante que fique muito claro que o governo está deixando de exercer seu papel, por omissão ou estratégia

, e que parte da sociedade civil decidiu não esperar de braços cruzados. 

“Se a gente, como sociedade brasileira, não sair dessa pandemia mais solidário, a nossa crise civilizatória não tem mais cura. A gente só tem a oportunidade dessa pandemia. Porque se esperarmos a segunda, a terceira ou a quarta pandemia pode ser tarde demais”, diz Vera Sena, da CPI-Acre. 

Para ver a primeira parte dessa reportagem, clique aqui.

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