Quando saí da cama naquela manhã específica, nunca pensei que terminaria o dia sob a mira de um fuzil, em um quarto repleto de mulheres rezando por suas vidas
Há pouco mais de 6 meses estive no oeste da Bahia para uma série de visitas à comunidades geraizeiras da região. Mas quando saí da cama naquela manhã específica, nunca pensei que terminaria o dia sob a mira de um fuzil, em um quarto repleto de mulheres rezando por suas vidas.
Mas é assim que as coisas acontecem por lá. Especialmente nos dias de hoje: se você mora em uma comunidade de pequenos agricultores no interior do Brasil, no meio de desertos de soja e milho, você precisa estar preparado para nunca voltar para casa.
O objetivo da viagem era levar a imprensa para conhecer as histórias de comunidades que vem sofrendo enorme pressão e violência para que saiam das terras em que nasceram, ocupadas por seus ancestrais há mais de 200 anos, para que grandes latifundiários possam passar suas máquinas sobre o que resta de Cerrado na região.
Infelizmente para os moradores das comunidades, no final dos anos 70 um grande empreendimento agrícola se instalou por lá, desmatando uma área quase 4 vezes o tamanho da cidade de Nova York. E depois de desmatar grandes áreas de Cerrado, nos anos 2000, esse empreendimento decidiu que o local habitado por essas pessoas , que é muito bem preservado, deveria ser seu. E do dia para a noite a vida para eles se tornou um inferno.
Naquele dia, levávamos uma equipe de TV alemã para ver de perto essa história e o rastro de destruição deixado pela empresa no Cerrado. A primeira parada foi em uma guarita de segurança, instalada dentro da área assegurada pela Justiça à comunidade. No início do ano um juiz confirmou uma liminar que garante a posse da área aos comunitários, embora, na prática, a fazenda ignore a decisão, continuando a ocupá-la.
Para evitar que os moradores acessem a terra, além da guarita que fica sempre com homens armados, a empresa construiu uma cerca e uma vala. Mas não uma vala qualquer, é um buraco com três metros de profundidade que segue em linha por quilômetros, até se perder de vista. Por lá não passam mais nem os moradores da comunidade, os verdadeiros donos da terra, tampouco os bichos do Cerrado. Alguns animais chegam a morrer tentando.
As coisas começaram a dar errado quando retornamos para a comunidade e uma picape branca desconhecida chegou ao local. Dela saíram quatro homens vestidos de bege, com fuzis em punho, porém sem qualquer outra identificação. “Eles estão armados! Meninas, vão para minha casa”, disse desesperada a moradora local que nos recebia. Não era a primeira vez que ela passava por isso.
Nos esquivamos entre a plantação de mandioca e nos reunimos em um dos quartos de sua casa, torcendo para que fosse um engano, mas sem saber ao certo do que se tratava. Enquanto algumas de nós choravam e outras rezavam, pensei que seria uma pena se eu morresse ali. Gostaria de ter feito algumas ligações antes, ter dito “obrigada” aos meus pais. Dessas coisas que você pensa na iminência do perigo.
Foi quando ouvimos os murros na porta, “saiam com as mãos para cima, aqui é a policía”. Abrimos e a casa foi invadida, fomos obrigadas a levantar as camisas, para mostrar que não estávamos armadas.
Do lado de fora os homens já estavam reunidos e começara a sessão de intimidação. “A gente veio aqui porque recebemos uma denúncia e precisamos entrar na sua casa para averiguar”.
Os homens permaneceram lá por cerca de duas horas, sempre com as armas em punho e pressionando os moradores para entrar nas residências sem mandado judicial.
Quando o sol estava perto de se esconder no horizonte, e vendo que a imprensa havia registrado toda a ação, eles decidiram ir embora, não sem antes dizer que aquilo não acabaria assim. Eles voltariam.
Estávamos todos apavorados, não apenas por nós, mas por aquelas pessoas que ficariam ali. Quando será o “depois”? Será que eles voltariam durante a noite? O que teria acontecido se não estivessemos alí? Eu estava em estado de choque, mas imagine o que aquelas pessoas estavam sentindo. É difícil conceber que pessoas são submetidas a isso, aquilo não era normal. Mas esse é o novo “normal” para essas comunidades e essa é uma realidade dura que temos que lidar.
“Não se preocupem, isso já vem acontecendo há muito tempo, já passamos por isso muitas vezes. Mas agora pelo menos vocês estão aqui para contar a nossa história”. E nessa hora todo mundo “morreu” um pouco por dentro. É isso? O máximo que podemos fazer contra esse “sistema” é contar essa história?
O respeito aos direitos humanos e à proteção ambiental estão profundamente conectados. Os povos indígenas, as comunidades tradicionais e os que estão na linha de frente dessa “expansão a qualquer custo” são os mais afetados pela ganância das empresas, muitas vezes sendo torturados e até assassinados. A soja produzida pela Estrondo, às custas da liberdade e dos meios de subsistência das comunidade geraizeiras, é vendida a comerciantes como Cargill e Bunge e depois enviada para todo o mundo, para se tornar ração para vacas, galinhas e porcos. Empresas de fast food como McDonald’s, KFC e Burger King compram soja desses comerciantes.
Não podemos permitir que essas empresas continuem fechando os olhos e ganhando milhões, enquanto comunidades inteiras estão sendo impactadas, sob constante ameaça e tendo seus direitos violados. O mundo precisa saber que existem pessoas que arriscam suas próprias vidas para proteger a terra, um rio, o planeta. É preciso mudar agora, antes que seja tarde demais para eles e para todos nós.
*O autor do texto presenciou o episódio de intimidação descrito, ocorrido em maio de 2019, em Formosa do Rio Preto, no oeste da Bahia. A narração corresponde a sua experiência pessoal sobre o ocorrido. Mantivemos o artigo anônimo para preservar a segurança do autor.
No comments:
Post a Comment
Note: Only a member of this blog may post a comment.