Saturday, June 19, 2021

A floresta é cura onde ela ainda resiste

Leo Lanna

 

O direito a um meio ambiente equilibrado está previsto na Constituição e o contato com a natureza faz bem para a saúde. Mas estamos ficando doentes por causa da destruição

A Amazônia, como os outros biomas, molda nossas vidas e nossos lares. É preciso continuar lutando por essa floresta, que cura, que nos recebe com carinho, que restaura nossos sentimentos. (Projeto Mantis)

Sento-me à beira do rio para lhes escrever. Corre o Cristalino, como há milhares de anos. Ao longo dos meses nos conectamos com a floresta em seu entorno, que lhe traz som e cor. Nos lembramos do que foi perdido enquanto a Amazônia revelava um pouquinho de si para nós. Agora, restando na última semana de Expedição Austral, entendo o que aqui sentimos e espero lhes trazer um sorriso, lembrando do passado, na busca de termos um futuro neste país. 

O Brasil anda sedando nosso espírito, nos acostumando à barbárie, secando lágrimas antes mesmo de serem derramadas, anda sequestrando todas as nossas emoções. Desde o início da pandemia, quase sem perceber, eu e Lvcas, há meses confinados, perdíamos os poucos risos, e até o luto era afogado em choros rasos, solitários. Então chegamos à Amazônia. 

Toda beleza, que já relatei antes no blog, foi um choque. Como voltar no tempo da biodiversidade bela e infinita. Só algumas semanas depois percebi que também eu havia voltado, retornado a mim mesmo e meu lar neste planeta. Era um fim de tarde de calor que me lembrava de quando eu era menino no interior de Minas Gerais. Subimos a torre da RPPN Cristalino para ver o sol se pôr. Lá de cima, observando a floresta misturar seu verde com o azul do horizonte, uma lágrima escorreu. Livre, serena e calma, como há muito não acontecia. 

Percebi que chorava de emoção pelo privilégio de ver algo tão belo e ancestral. Por compreender quantos mistérios estavam ali guardados pelas torres-árvores. Pelo canto efêmero do inhambu. A Lua cheia nascia e uma neblina surgiu sobre um trecho de floresta. Esse também era o reino dos louva-a-deus que busco, que guiam nossa jornada. O que senti foi ter recuperado o gosto das emoções que estavam adormecidas em meu peito. Entendi que aqui o riso, o medo, o choro, as saudades, eram livres, espontâneos e belos. 

a Amazônia, como os outros biomas, molda nossas vidas e nossos lares. É preciso continuar lutando por essa floresta, que cura, que nos recebe com carinho, que restaura nossos sentimentos. (Projeto Mantis)

Certa noite de Lua cheia, caminhamos até uma clareira natural para fazer um registro da mata. A técnica de fotografia usada demandava que apagássemos as lanternas por um minuto a cada foto. À nossa volta algum animal grande rondava, quebrando galhos do chão.  As corujas chamavam com sons que nunca ouvimos, muitas vezes lembrando ecos de vozes do passado que houve aqui. Uma mãe-da-Lua soprou seu canto triste e belo feito flauta. Cada vez que desligamos as luzes, um frio corria pela espinha. Calafrio de apreensão e adrenalina que nos tornava muito vivos. Um medo gostoso de sentir. A foto ficou incrível, e guarda essa emoção. A floresta tem essa capacidade, inclusive já estudada por cientistas, de nos restaurar. Como se não bastasse o fato de ser essencial para manutenção do clima, das chuvas e da biodiversidade, temos que entender que no Brasil que vivemos, a floresta é cura onde ela ainda resiste. 

Há duas semanas, retornando da mata à uma da madrugada, o Lvcas me encontra o louva-a-deus que mais buscamos aqui. Lá estava o pequeno folhinha, um animal de nome científico difícil (Choeradodis), raro e nunca registrado para o Sul da Amazônia. Fizemos festa na mata, nosso riso era fácil e contagiante, só nós dois, admirando aquele ser. Lembro disso com muito carinho. Voltei a construir aqui momentos lindos, imunes ao Brasil ceifador de sonhos e conquistas. São essas memórias que sugiro reviverem, com gosto. Qual era o sabor das tardes calmas antes da grande sombra cair sobre nós? 

Choeradodis – o raro louva-a-deus folha era conhecido apenas para o Norte da Amazônia e América Central, e agora foi descoberto na região sul por meio de nossa expedição. Uma espécie super camuflada e icônica. (Projeto Mantis)

Vai passar, dizem, mas será que um dia lembraremos de quem fomos antes? Será que lembraremos do que perdemos, e vamos lutar para reconquistar? Vamos simplesmente aceitar o que sobrou? Querem nos tirar tudo. Essa Amazônia que me restaura é ameaçada a todo segundo, por Projetos de Leis malditos, por gente sem escrúpulos que certamente não tem qualquer memória doce de tempos bons. Não tem qualquer amor, nem sabe o que é isso. Nós, que sabemos, temos que seguir firmes, ancorados em nossas raízes fortes e lançando folhas novas ao vento. 

Um dos piores sentimentos que existe é a solastalgia, definida pelo estresse da perda por mudanças na natureza ao nosso redor. A incapacidade de seguir existindo quando uma floresta é derrubada, uma montanha escavada, quando o nosso meio ambiente é drasticamente alterado e assim somos incapazes de chamar novamente de lar. É isso que querem fazer com o Brasil. Transformar vida em cinzas, e nós em almas penadas, vagando vazias sem sentimentos.

Sempre gostei de Elis Regina e, enquanto lhes escrevo, me lembrei de sua canção com Milton Nascimento, “O Que Foi Feito Devera? “, enquanto lhes escrevo. O rio segue correndo à minha frente, a voz de Elis ecoa potente e a floresta me traz força para seguir. Nossa força está nas histórias e amores que construímos com o privilégio de uma natureza ainda exuberante à volta. Amazônia, Caatinga, Cerrado, Pantanal, Pampas, Mata Atlântica. Esses lares, tão nossos lares, que damos um nome e são muitos, multiplicando e potencializando nossa vida. Do pequeno e raro louva-a-deus folhinha, à grande sumaúma, não podemos nos esquecer. Aliás, vocês os conhecem? Já visitaram seus lares tropicais, olhando atentamente, observando quão surpreendentes, delicados e fortes são? Tenho certeza que essas paisagens e seres-sentimentos nos trazem vida, e aqui estamos para continuar protegendo e lutando para mantê-los vivos. 

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