Monday, December 23, 2013

Testemunha da história, parceira na luta

Chico Mendes e Mary Alegretti (Reprodução / Acervo Pessoal Mary Alegretti) 

A antropóloga Mary Alegretti é muito provavelmente uma das pessoas “de fora” que mais conviveram com Chico Mendes a partir dos anos 80, quando ele já tinha muita clara a luta que travaria até o assassinato que o vitimou: Mudar a situação do seringueiro explorado, sempre endividado, subalterno e sem acesso à educação.
Mary conhecia bem essa realidade, quando visitou seringais tradicionais pelo Acre antes de conhecer Chico, “tipo os dos livros de história, com a figura do patrão sempre muito presente”, como ela mesma descreve. E ele a apresentou ao “outro lado”, dos seringueiros que articulavam entre si e com outras comunidades da região, independentes, sobretudo.
Conheça um pouco mais sobre a história desta amizade e desta mulher que tanto ajudou nas articulações e no persistente trabalho de Chico pela vida e pela dignidade dos seringueiros com alguns dos trechos desta entrevista:
Como foi seu primeiro contato com Chico?
Eu fiz a minha tese de mestrado no Acre. Conheci o Chico quando ele era vereador em Xapuri, antes de qualquer coisa que tivesse a ver com meio ambiente, ou com questões nacionais, internacionais ou qualquer coisa desse tipo. Ele era um líder sindical eleito vereador, mas de coração e de tudo presidente do sindicato de Xapuri, ou pelo menos da diretoria do sindicato dos trabalhadores rurais de Xapuri.
Isso era 77, mais ou menos?
Não, eu fui pro Acre em 78 mas o conheci em 81. Nesse momento, os sindicatos já haviam sido criados e ele tinha acabado de voltar do processo que ele teve da justiça militar na Amazônia, junto com o Lula. Que aconteceu depois do assassinato do Wilson, então eu conheci ele nesse momento. Já tinha defendido meu mestrado mas tinha voltado pro Acre, estava começando um projeto de doutorado. E aí eu o conheci assim, porque ele era um líder sindical muito bem informado e que todas as pessoas davam ele como referencia do que estava acontecendo no Acre naquele momento.
E eu acho que eu fiz uma das primeiras entrevistas que ele deu na vida, entrevista longa, gravada, onde eu pergunto tudo, porque eu não conhecia nada, eu não tinha menor noção de quem ele era, e ele não era conhecido, ele era um líder sindical que vivia falando do desmatamento e das injustiças com os seringueiros. E ele lia muito, então ele lia o Varadouro, que era o jornal famoso da época, do Acre, era um jornal alternativo que saia todos os meses, e ele era um leitor e um divulgador e um cara que escrevia cartas para o jornal. E eu fiz essa entrevista com ele na sede do Varadouro, em Rio Branco. Exatamente porque os jornalistas disseram “olha, quer saber o que está acontecendo, é o Chico Mendes quem pode te falar”. Então foi assim que eu o conheci.

                    Chico Mendes e Mary Alegretti (Reprodução / Acervo pessoal Mary Alegretty)


  

Você publicou esta entrevista?
A entrevista está na minha tese, e junto com o meu livro eu pretendo colocar ela em áudio, porque é muito original, é muito interessante. Porque ele já tinha uma visão histórica, uma interpretação da história do Acre, da história dos seringueiros e tinha convicções, conceitos claros, ele já era uma pessoa com pensamento muito original.
Nessa época em que encontrou ele, já havia acontecido algum enfrentamento pacífico, os famosos empates?
Já, porque os empates começaram em 76. Eu conheci ele em 81, quer dizer, já havia quase uma década de empates, os conflitos começaram em 70, eu tenho um artigo em que falo bastante das diferentes etapas do conflito. Em 76 teve o primeiro empate e aí não parou mais. Quando eu o conheci, como ele tinha sido eleito vereador, então ele estava numa fase onde ele estava fazendo política, um pouco desconfortável, porque eu acho que não era exatamente o que ele gostava, mas ao mesmo tempo ele estava mobilizando o sindicato, que tinha ficado nas mãos de um pelego lá em Xapuri. E ele estava mobilizando, organizando o sindicato pra voltar a tomar conta e ele acabou se elegendo presidente do sindicato em 83, e era onde ele se sentia melhor, mais confortável.
Então eu o conheci nesse momento, e ele me convidou pra ir a Xapuri. Ia acontecer uma assembleia muito grande lá, no final daquele mês, foi em maio de 78, ia acontecer uma assembleia grande, para tentar mudar a diretoria do sindicato, e eu fui. E fiquei super impressionada com o que vi, como antropóloga eu gravei tudo, não filmei porque na época ninguém ousava filmar, mas gravei tudo, essas reuniões todas que aconteceram nessa época, estava o Julio Barbosa, o Raimundo de Barros, todas as lideranças que continuaram depois que ele foi assassinado. E eu fiquei muito impressionada mesmo.
E o que mais te chamou a atenção nessa época, nele? Era o poder de mobilização, a capacidade de oratória?
Ele não era desses líderes de inflamar as massas, ele era um líder muito simples, mas ele passava muita legitimidade, muita sinceridade. E ele era uma pessoa também que tinha uma capacidade de acolher todo mundo. Ele dava valor as pessoas que se interessavam pelo trabalho que ele fazia e pela luta dos seringueiros, ele acolhia todo mundo. Eu fui uma das primeiras pessoas de fora que chegou, depois vieram outros, no decorrer dos anos, mas ele sempre teve essa postura.
Chegava um jornalista ele ia lá, mostrava, ia junto, contava a história, ele cativava a pessoa, e a pessoa se sentia ligada a ele, a causa, e não largava mais. Eu acho que era um carisma, mas não o carisma de quem vai lá e instiga as massas, é uma carisma de quem cria uma certa cumplicidade. Ele foi capaz de mudar a vida de muitas pessoas, e não só a minha. Eu larguei a universidade para apoiar o trabalho dele. Mas não fui a única.
Para mim ele passava legitimidade, sinceridade, um cara que era honesto, que realmente defendia o que defendia por convicção, ele não tinha nenhuma característica de nenhum tipo de político ou daqueles líderes populistas, demagogos. Ele tinha uma convicção, acreditava que as coisas podiam mudar e ele ia em frente apesar de todas as dificuldades, ele também tinha bom-humor e nós na verdade criamos uma amizade. Isso que eu acho uma coisa peculiar, nós ficamos amigos com essa simplicidade do movimento social. E eu fiz tudo o que eu pude pra trabalhar com ele, pra ajuda-lo, pra dar força, pra divulgar, pra informar, pra defender, pra tudo.
E vocês tinham afinidade política?
Se nós tínhamos as mesmas convicções políticas, eu nem sei, nunca me preocupei em saber de qual linha era dentro do PT, se ele era a favor de um ou de outro, nunca foi uma questão ideológica. E deixa eu te falar porque. Antes de conhece-lo eu fiz a minha tese de mestrado em um seringal tradicional lá no Acre. E era um seringal de patrão, aquela coisa bem dos livros de história. E eu fiquei muito chocada.
Quando eu conheci o Chico, ele me deu a história. Ele me colocou no contexto. Ele disse “olha, o que você viu é um lado da história. Em Xapuri a gente tem o outro lado. Que é o lado dos seringueiros que já não pagam renda, que já não tem patrão, que lutam contra o desmatamento, que já são autônomos, e aqueles seringueiros que você estudou eles são os cativos, que ainda tem patrão e tal”.
Então ele me deu essa perspectiva, e ele tinha um senso de busca por justiça muito forte. Mas eu entendi qual era o sentido da luta dele porque eu tinha visto o que era o seringal, o patrão, o seringueiro eternamente endividado, eu tinha estudado essa situação. Então quando ele falava do seringueiro liberto, do empate, da necessidade da educação, eu tinha uma profunda empatia, porque eu tinha percebido exatamente, sabia o que ele estava falando. E acho que ele percebeu isso, por isso a gente tinha muita cumplicidade.
Qual era a grande vontade de Chico lá no início, quando conheceu ele?
Ele tinha uma obsessão, que era mudar a situação do seringueiro. Porque ele tinha vivido, com a família dele, essa situação e ele tinha conseguido sair desse processo, ser alfabetizado. Ele dava um valor muito grande para a educação, então ele tinha essa coisa, queria mudar a realidade do seringueiro. Esse era o pensamento dele. Depois ele juntou a questão da floresta, do desmatamento, mas pelas razões de quem vive da floresta sim, como meio de vida.
Quando você olha para o avanço do agronegócio na Amazônia, todo o conjunto de projetos e leis que avançam nas esferas políticas dificultando novas demarcações de terras, pedindo revisões nas já existentes e outras ameaças, pensa que 25 anos depois, vivemos uma situação tão difícil quanto?
Eu acho que tem uma grande diferença que naquela época estávamos em um regime militar. Então qualquer oposição a qualquer política do governo militar implicava num risco muito alto, até de vida, e num risco muito alto de repressão e perseguição, mas por outro lado tinha uma grande repercussão internacional qualquer manifestação que fosse contra o regime militar e contra a politica militar dos índios. Então os aliados principais que nos tínhamos eram primeiro a comunidade internacional ligada a questão indígena, depois os organismos multilaterais como por exemplo o banco mundial, banco interamericano de desenvolvimento, eles eram, eles exerciam o papel de mediação em certo sentido.
Então acontecia alguma coisa lá no Acre, como aconteceram, com os Yanomami, como aconteceu políticas tão ou mais fortes que as de hoje e havia uma repercussão internacional, e essa repercussão gerava uma pressão que  constrangia os militares. Então de certa forma, a democratização fez com que as pressões internas passassem a ter mais importância e enfraqueceu a capacidade de mobilização, porque  mobilizar a opinião pública brasileira é muito difícil, é mais difícil do que mobilizar a opinião publica internacional, pra questão indígena principalmente. É uma coisa que não sensibiliza. Mas sensibilizava muito a opinião publica internacional, então era um jogo de pressão muito forte que se articulava lá fora e rebatia aqui dentro.
Esse é um aspecto, o outro aspecto é que o movimento social enfraqueceu muito desde que o PT assumiu o governo. E como toda a sociedade colocou a expectativa de que não precisava mais fazer esse jogo de pressão porque o PT iria atender essas demandas históricas e centenárias das sociedades indígenas e dos extrativistas, e como boa parte das lideranças e dos interlocutores foi para o governo e não aconteceu o que se esperava, gerou um vazio, um vazio enorme, de capacidade de pressão, as lideranças hoje não conseguem questionar o governo, não conseguem.
As lideranças indígenas questionam até mais do que os outros, eu acho que eles tem uma capacidade de mobilização, de questionamento muito alta. Eles são muito mais organizados, se eles conseguissem sensibilizar a opinião pública e conseguissem mais respaldo, eles impediriam essas mudanças que o governo está fazendo, só que há um constrangimento do movimento social em geral de questionar o governo.
E muitas das ameaças de hoje são as mesmas de antes? O avanço da pecuária aliado com a expansão da soja...
A soja é um processo natural da expansão, é uma etapa seguinte da expansão da fronteira, depois da madeira, da pecuária vem a soja, então é prevista digamos assim, eu acho até que é mais fácil lidar com a soja do que com a madeira e com a pecuária porque a soja tem um impacto grande na renda local, e com a renda as pessoas também mudam de qualidade de vida, e elas acabam tendo mais acesso a informação, a educação, então eu não meço isso tanto assim. Apesar de que eu acho que a Amazônia pelo fato de não ter uma situação de terra regularizada a soja vai vir acompanhada por conflitos fundiários. Mas acho que o problema maior é esse hoje, eu sinto que as investidas são muito parecidas, principalmente na parte legal, de diminuição de direitos indígenas, mas não há, não existem mecanismos que façam com que isso seja freado, então gera-se um impasse muito maior do que no passado.
E qual o maior legado deixado, o que, na sua opinião, fica de mais marcante, que aprendemos como país?
Eu vejo esses impasses muito fortes em relação aos indígenas e muito forte em relação aos direitos sociais digamos de toda uma população ribeirinha, extrativista na Amazônia. Mas o maior legado sem dúvida é a revolução do seringueiro, que é a criação das reservas extrativistas, porque isso é permanente, e é um conceito legitimamente vindo do movimento social, foi uma conquista e não uma concessão.
Você veja, o conceito surgiu em 85, as primeiras reservas e o conceito formal foi firmado em 90 e você tem ciclos de criação das reservas mas elas não param de ser criadas e não param de ser demandadas. Então é uma coisa extremamente fértil e conectada com a necessidade dessas comunidades. Eu acho que isso é um legado que ninguém poderia imaginar que seria possível acontecer. E se isso começasse hoje, certamente não aconteceria. Se essa ideia surgisse hoje e se as reservas que foram criadas até agora tivessem que começar a ser criadas a partir de agora isso não aconteceria.

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